Confusão do fato, a doutrina mensaleira 25/11/2012
- Kai Ambos*
O ex-ministro José Dirceu terá de se conformar mais cedo ou mais tarde: não deve sua condenação à doutrina jurídica que Ricardo Lewandowski tomou por "controvertida" e "antiga", e petistas, por "superada", "nascida na Alemanha nazista" e "atualizada na Guerra Fria".
O que levará o chefe do mensalão à cadeia não são teorias, mas provas. A tese do domínio do fato, fixação jurídica de petistas, não tem nada com isso.
Considere o exemplo hipotético: o poderoso A manda B autorizar C a pagar D e E, por intermédio de F e G, com o dinheiro que H desviou dos cofres públicos para a conta de C e seu sócio I, sob a proteção de J e K, que têm interesse em agradar A, B e C em troca de favores que possa obter de L, que não sabia de nada...
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Afinal, quem é a figura central da trama? Quem é coautor? Quem é mero partícipe? É disto que tratam diversas teorias à disposição das cortes na hora de pesar a responsabilidade de cada réu.
Domínio do fato é uma dessas teses. Por ela, dá-se o status de autor ao sujeito que tem o controle da empreitada criminosa, ainda que outras pessoas sujem as mãos em seu lugar.
Parece banal, mas não é este o resultado a que chegam outras teorias, como a que toma por autor apenas o sujeito do "verbo núcleo" do tipo penal (o que "mata", "ofende", "falsifica" etc.) ou a que considera partícipe quem demonstra "vontade de partícipe", independente da gravidade de sua conduta.
Ao invocar esta ou aquela doutrina, o que se pretende é evitar aberrações como a condenação de um laranja a uma pena mais dura que a do mentor do crime ou o abrandamento da punição de um assassino que alega apenas cumprir uma ordem superior.
É vasta e complexa a literatura sobre o conceito de autor. De toda maneira, qualquer que seja a doutrina abraçada pela corte, só se pesa a responsabilidade de um criminoso após a comprovação de que o sujeito tomou mesmo parte do crime.
"Somente a invocação da teoria não tem o condão de dar fundamento a um juízo de condenação", explicou o decano do STF, Celso de Mello.
Por isso, tanto nos argumentos da Procuradoria-Geral da República como no voto do ministro Joaquim Barbosa, o domínio do fato é uma rápida passagem da fundamentação teórica, sem jamais fazer as vezes de elemento-chave de convicção.
Ao pedir a condenação dos réus, o Ministério Público se apoia é no Código Penal, em particular seu artigo 29: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade".
E Barbosa, ao dosar a pena dos chefes do esquema, ampara-se no artigo 62, que agrava a punição para quem "promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes".
Em qualquer caso, condenação exige provas. Acusar a mais alta corte de dispensá-las no caso do mensalão é só desatenção. Ou má-fé.
A confusão começou com o voto de Lewandowski sobre a acusação de corrupção ativa contra Dirceu.
O revisor do processo guardou suas considerações sobre domínio do fato para encerrar seu longuíssimo voto.
Nele, acusou o Ministério Público de usar a doutrina como uma muleta retórica para compensar o que chamou de "absoluta e total carência de provas" contra o ex-ministro.
Em amarga intervenção, ao final da qual absolveria o chefe da quadrilha, Lewandowski disse que o domínio do fato dá margem a especulações, temeu pelo mau uso da doutrina em outras cortes e citou seu professor do ginásio para lamentar a importação de "movimentos intelectuais" com 50 anos de atraso.
O revisor foi logo refutado por outros ministros, em particular Ayres Britto, Luiz Fux e, de forma esmagadora, Celso de Mello.
Em detalhada fundamentação, o decano traçou as origens da teoria desde a Alemanha de 1915, passou por seu marco fundador, em 1939, e ocupou-se longamente da abordagem seminal do alemão Claus Roxin, em 1963.
São essas datas que levaram o PT a falar em doutrina "nascida na Alemanha nazista" e "atualizada em plena Guerra Fria".
O que o partido omite é que a teoria é justamente o arcabouço que autoriza a condenação exemplar de um carrasco nazista. Ou seja, omite o principal.
O que é a teoria do domínio do fato?
A teoria do domínio do fato foi desenvolvida pelo professor Claus Roxin nos anos 1960 para distinguir melhor as formas de autoria e participação secundária (instigação, cumplicidade).
Para os casos de macrocriminalidade, como o nazismo, Roxin propôs uma modalidade particular do domínio do fato: o domínio por meio de um aparato organizado de poder, também chamado “domínio por meio de uma organização."
Para desenvolver a teoria do domínio do fato, Roxin inspirou-se no caso de Adolf Eichmann, oficial nazista encarregado da logística do Holocausto – o mesmo carrasco que levou Hannah Arendt (1906-1975) a cunhar a expressão "banalização do mal".
O interesse de Roxin estava justamente em fundamentar uma doutrina que alcançasse o criminoso que não suja as mãos, para tratá-lo como autor, não cúmplice.
Capturado na Argentina e julgado em Israel, Eichmann foi executado, na forca, em 1962.
A obra "Autoria e domínio do fato" saiu logo no ano seguinte.
Segundo a formulação de Roxin, autor é quem tem o domínio do fato, e este pode ser exercido tanto pelo domínio da própria ação, que é o caso mais comum (quando o assassino decide apertar o gatilho, por exemplo) como pelo chamado "domínio da vontade" (por coação, por exemplo).
Ao desenvolver esta segunda modalidade de domínio do fato, Roxin chegou a um caso particular e bastante original: o "domínio por meio de um aparato organizado de poder".
Esta vertente fez fama em diversas cortes, desde a alemã, para julgar os crimes ocorridos na Alemanha Oriental, até a argentina, no caso do ditador Jorge Rafael Videla, e a peruana, no processo contra o ex-presidente Alberto Fujimori.
(Supõe-se que a militância de esquerda não veja absurdo nessas condenações).
E aqui a doutrina se cruza com o caso do mensalão. Esses "aparatos de poder" são descritos como estruturas hierárquicas à margem da lei, com poucos dirigentes e muitos subordinados.
Nestes casos, os executores, que estão na ponta final da linha de comando, são facilmente substituíveis ("fungíveis") e nem é necessário que todos se conheçam.
Ao longo dessa estrutura verticalizada, quanto mais nos afastamos da cena do crime, tanto maior – e não menor – é a responsabilidade do agente.
E é bem disso que trata o processo do mensalão: "uma grande organização que se constituiu à sombra do poder, formulando e implementando medidas ilícitas que tinham por finalidade a realização de um projeto de poder", conforme a síntese de Celso de Mello.
"Estamos a tratar de uma hipótese de macrodelinquência, e em situações assim é plenamente aplicável a teoria (do domínio do fato)."
No mesmo voto, Mello afastou as insinuações de que o STF estivesse inovando ao acolher esta doutrina. Lembrou que a tese é absolutamente compatível com as leis brasileiras e já vem sendo aplicada - e bem aplicada - tanto em instâncias inferiores como no próprio Supremo.
A teoria do domínio do fato volta a cruzar o caminho do mensalão em outra modalidade descrita por Roxin, a do "domínio funcional do fato".
Aqui, trata-se por coautores aqueles que, em ação orquestrada, realizam cada qual uma certa tarefa imprescindível para o êxito de determinada empreitada.
Esta vertente foi lembrada nos votos de Joaquim Barbosa e de Luiz Fux. Também por esta teoria, o que se pretendeu foi negar o status de mero partícipe a Dirceu e Valério, entre outros réus.
"Valério e seus sócios foram a 'longa manu' daqueles que idealizaram politicamente a patrimonialização do estado", disse Fux.
Até o início do julgamento, Roxin e sua doutrina passaram longe das preocupações dos mensaleiros. Nas alegações finais, são raras e breves as referências à teoria.
As poucas citações tentam levar os ministros do STF a crer que os réus não tinham domínio qualquer dos fatos.
É o caso de Simone Vasconcelos, que tentou passar por mera "executora das determinações" de Valério e dos sócios Cristiano Paz e Ramon Hollerbach.
"Se alguém há de ser reputado como detentor do domínio sobre os fatos, seriam os sócios".
A defesa de Geiza Dias alegou algo próximo: não tinha nem o domínio, nem o conhecimento “das intenções e dos atos praticados pelos diretores da empresa SMP&B”.
Simone foi condenada a mais de 12 anos. Geiza foi inocentada. O que determinou a sorte de cada uma não estava no âmbito da doutrina, mas nas provas: Geiza, a “funcionária mequetrefe” com “salário de doméstica”, preenchia cheques e passava e-mails, enquanto Simone, diretora da agência, cuidava pessoalmente para que o dinheiro chegasse aos mensaleiros, valendo-se até de carro-forte.
Os mensaleiros podem até consultar Roxin em pessoa, como foi noticiado e depois desmentido, para saber se suas teses foram bem ou mal esgrimidas em plenário.
Poderão de quebra conhecer outra tese famosa desenvolvida por Roxin, o princípio da insignificância, bastante aplicado em tribunais brasileiros para os chamados crimes de bagatela – ao que consta, nenhum mensaleiro chegou ao ponto de invocá-lo.
Só não poderão contornar a fartura de provas que convenceram a maioria do Supremo a culpar 25 réus do processo.
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*Penalista alemão, professor da Universidade de Göttingen