O fim da herança bendita? 16/12/2012
- Edward Amadeo e Hermínio Fraga*
Nas décadas de 1950 a 1970 o Brasil deu um salto, com o produto interno bruto (PIB) per capita indo de 12% para 24% do americano. Mas o esforço de crescimento deixou cicatrizes. O endividamento do governo fez sucumbir o modelo e daí resultaram a hiperinflação, planos fracassados, queda do PIB e aumento da desigualdade e pobreza.
O modelo do "milagre" abusou do fechamento da economia e da proteção aos produtores domésticos. E também da intervenção do governo na economia, via estatais e crédito direcionado e subsidiado. Não houve foco nos motores do crescimento: a educação e a produtividade.
A partir dos anos 90, a agenda de reformas teve dois momentos. O primeiro foi nos governos Collor e, especialmente, FHC. Além da estabilização com o Plano Real e da posterior introdução do tripé macro que vigora até hoje, houve avanços em áreas críticas, como sustentabilidade da Previdência Social, institucionalidade da política fiscal, privatizações, regulação do sistema financeiro e corporativo, abertura da economia e ampliação da rede de proteção social.
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No primeiro governo Lula houve aprofundamento das reformas no campo financeiro e nos mecanismos diretos de combate à pobreza, além de reforços na disciplina fiscal e monetária, que alavancaram um período de rápido crescimento do crédito e um bom aproveitamento da fase de boom global entre 2003 e o início de 2008. A partir do segundo mandato do presidente Lula, porém, essa agenda foi interrompida. Em áreas cruciais como institucionalidade da política monetária, regulação do mercado de trabalho, legislação tributária e tarifária, avaliação de políticas públicas, política educacional, eficiência do Judiciário e ambiente regulatório para o investimento em infraestrutura, não houve avanços.
Em lugar da sua continuidade, desde a crise de 2008 tem-se a segunda fase de reformas, com o uso de instrumentos regulatórios, fiscais e tributários com o objetivo de microgerenciar a atividade econômica. Aqui se incluem a lei do pré-sal, as regras de conteúdo nacional para as compras de estatais, o uso dos bancos públicos e empresas estatais para dirigir o investimento e o consumo, a elevação de tarifas de importação, a mudança na base de tributação da Previdência Social, a redução do IPI de bens duráveis, o subsídio ao consumo de petróleo, a imposição de IOF sobre investimentos estrangeiros em portfólio e a mudança do marco regulatório sobre produção e distribuição de energia.
Houve, assim, uma profunda guinada na agenda de reformas. A proposta da primeira fase, de criar um macroambiente propício ao investimento por meio de maior eficiência dos serviços e investimentos públicos, da transparência regulatória e do aumento da produtividade dos trabalhadores, foi substituída pela estratégia de criar mecanismos para incentivar a demanda, em especial o consumo e o emprego.
Uma tem como princípio a criação de um ambiente de igualdade de condições para todos os empresários e trabalhadores. A outra, a geração de incentivos que diferenciam os empresários e trabalhadores de acordo com o seu setor de atuação.
A distinção entre as duas abordagens é capturada pelo professor Luigi Zingales quando se refere a políticas pró-mercado e políticas pró-negócios. As primeiras favorecem a concorrência e a igualdade de tratamento entre grandes e pequenas empresas, em diferentes setores, e produtores nacionais e estrangeiros. As segundas buscam responder aos pleitos dos setores empresariais e trabalhistas na forma de tratamentos diferenciados em áreas como impostos, regulação e crédito.
Fazem-se duas críticas ao modelo pró-mercado. A primeira é que o aumento da concorrência produz perdas durante processos de reestruturação, como as privatizações e a abertura da economia, e acentua a desigualdade de renda. A segunda é que o mercado não propicia ganhos de escala que alavanquem investimentos e inovações - um argumento caro ao economista austríaco Joseph Schumpeter.
O modelo pró-negócios procura reduzir as desigualdades intervindo no funcionamento dos mercados - por exemplo, por meio do salário mínimo ou protegendo trabalhadores contra demissões. E oferece tratamento preferencial a empresas em setores estratégicos, de modo que se tornem empresas grandes e oligopolistas, com altos lucros para financiar investimentos e inovações.
Só que o tiro pode sair pela culatra. Ao eleger vencedores, a abordagem pró-negócios também elege os perdedores, que são, evidentemente, os empresários e trabalhadores da grande maioria das empresas, que não foram eleitas para serem as campeãs. Perde-se também em eficiência e produtividade, como bem sabemos do período do fim do "milagre econômico". Finalmente, a taxa agregada de investimento do Brasil continua em patamares bem inferiores aos dos nossos pares.
A resposta da abordagem pró-mercado aos efeitos distributivos não é limitar a concorrência, mas nivelar oportunidades, sendo educação pública a mais importante, e redistribuir renda com políticas de transferências focalizadas.
Enfim, é importante reconhecer que houve uma guinada na agenda de reformas. Até porque existe hoje grande ansiedade quanto aos resultados da nova estratégia. Depois do bom desempenho da economia brasileira até 2010, houve uma clara desaceleração da atividade e queda do investimento, em parte cíclica, em parte ligada à rigidez de oferta de nossa economia.
Nosso receio é que uma certa volta ao modelo dos anos 70 nos leve outra vez à frustração de nossos planos de desenvolvimento. Alguns sinais indicam que o modelo se está esgotando. Será que está acabando a herança bendita de Fernando Henrique Cardoso?
Com todo o esforço dos últimos 20 anos, ainda estamos em 20% do PIB per capita americano. Temos, portanto, um bom espaço para crescer. Mas sem investir mais e melhor, sem uma educação muito melhor e sem um Estado eficiente não vamos chegar ao nosso potencial.