Fantasia semântica político-petroleira 24/12/2012
- Mario Cesar Flores*
Os royalties da exploração do petróleo no mar estão na agenda do dia: Estados produtores (admitamos por ora essa qualificação) e não produtores se confrontam no Congresso Nacional e políticos do Rio de Janeiro e do Espírito Santo afirmam em tom patético que recorrerão à Justiça, caso o Congresso não atenda esses Estados.
A Constituição define como bem da União o mar territorial e assegura a Estados e municípios, "nos termos da lei (...) participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural (...) no respectivo território, mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva (em que o Brasil detém o usufruto econômico) (...) ou compensação financeira por essa exploração". O dispositivo não é excludente, não impede que todos os Estados e municípios sejam beneficiados pela exploração no mar.
A lei recém-aprovada pelo Congresso, que responde ao quesito constitucional "nos termos da lei", define um paradigma distribuidor benéfico a todo o País, independentemente da localização da extração do produto. A presidente da República vetou a extensão desse paradigma aos contratos já vigentes e o sancionou no tocante às concessões futuras. Em princípio, o veto parece lógico: a segurança jurídica inerente à democracia o sugere adequado. Mas o aprofundamento dessa faceta do tema exige conhecimento jurídico, razão por que este artigo se limita à opinião acima, obviamente sujeita a objeções alicerçadas na lei e/ou no interesse nacional. A questão que ele desenvolve diz respeito à atribuição a Estados e municípios do epíteto de produtores no alto-mar longínquo, disseminada e usada à revelia de análise judiciosa.
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O paradigma distribuidor vigente até agora era estruturado sobre a extensão virtual mar afora, de Estados e municípios, apoiada na concepção geográfica da confrontação. Esse paradigma sugere uma pergunta, sempre omitida do trato do assunto: qual a lógica da extensão de Estados e municípios pelo Oceano Atlântico, até dezenas ou centenas de quilômetros de suas praias, onde não existe e é compreensível que não possa existir qualquer presença consistente, estadual ou municipal? O modelo federativo pressupõe, além de direitos, deveres. Os Estados e municípios vistos pela ótica política como produtores marítimos de petróleo e gás estão aptos a exercer os deveres da esfera estadual e municipal nas distâncias e condições da atividade?
Aventemos alguns exemplos: se ocorrer vazamento de óleo em plataforma de exploração a 300 km do litoral, que reação local pode caber ao órgão ambiental do Estado e à defesa civil do município (qual seria ele?) em cujas respectivas zonas econômicas exclusivas ocorreu o fato? Nenhuma, nem poderia caber. Se temporal violento assolar uma plataforma a 300 km do litoral, o que farão a defesa civil estadual e a municipal em prol da tripulação? Compreensivelmente, nada. Caso aconteça um delito em plataforma, cabe à polícia e à Justiça estaduais (de qual comarca?) investigá-lo e julgá-lo? Exemplo do cotidiano: quando hoje ocorre vazamento de óleo de navio no alto-mar, alguém pensa em atuação de Estado e município?
Calamidades ambientais como a que aconteceu em praias dos EUA no Golfo do México em 2010, decorrente de explosão em plataforma de exploração no mar, devem ser cobertas por instrumentos de atuação e financeiros para isso organizados. Mas essa cobertura se aplica a quaisquer Estados e municípios para onde as correntes marinhas levarem o desastre, não pode limitar-se à discutível confrontação geográfica justificadora da distribuição privilegiada. Quanto às instalações terrestres de apoio, elas devem ser tributadas pela sistemática normal e, se for o caso, oneradas "a mais" em razão dos cuidados ambientais especificamente exigidos. É estranha a afirmação de que o destino privilegiado dos royalties se justifica porque a exploração marítima implica investimentos em terra. Seria o progresso local um mal a ser pago por todo o País? Se o progresso a reboque do petróleo significa ônus, o que explica a disputa entre Estados pretendentes à instalação de refinarias e indústrias petroquímicas?
Em suma, o conceito disseminado insistentemente, de Estados e municípios produtores a dezenas ou centenas de quilômetros de distância oceânica, é uma concepção mais para ilusão política do que condizente com a realidade. É louvável a opinião do então presidente Lula, endossada pelo Congresso e sancionada pela presidente Dilma, de que os royalties da camada pré-sal deverão ter aplicação nacional. Não se trata de "tirar" deste ou daquele Estado, como afirmam políticos do Rio de Janeiro, trata-se de distribuição razoavelmente equânime do que pertence a todo o Brasil.
Quanto à questão dos contratos vigentes, cabe repetir: é assunto sujeito a injunções legais complexas - e este artigo não comporta avaliar se seria preferível atropelar a segurança jurídica com a derrubada do veto, assim corrigindo imediatamente o modelo distributivo estruturado na fantasia semântica (Estados e municípios produtores no mar distante) ou aguardar que o esgotamento dos contratos vigentes faça a correção, com a manutenção do veto.
Seja qual for a alternativa adotada, seria importante estabelecer regras objetivas e restritivas quanto ao uso dos recursos objeto do artigo, porque, em razão da nossa cultura política e societária, eles correm o risco de servir à "gastança" corrente, inclusive com pessoal. A declaração do governador do Rio de Janeiro na TV, de que a redução da receita dos royalties ameaçaria o preparo do Rio para a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 e ameaçaria até mesmo o pagamento de servidores e pensionistas, permite-nos concluir que sua preocupação não se restringe aos encargos impostos pela exploração no mar... A ideia defendida pela presidente e pelo ministro da Educação - limitar o uso na educação - é de fato simpática, mas aparentemente irrealista.