Não foi das menores questões enfrentadas pela Suprema Corte a da perda de mandato parlamentar dos deputados condenados na Ação Penal 470, denominada mensalão. Diferentes interpretações constitucionais se confrontaram, todas fundamentadas em nossa Carta Maior.
O voto vencedor no Supremo, por decisão apertada, mostra quanto o problema era dos mais espinhosos, não produzindo uma adesão imediata dos ministros. Argumentos existiam de ambas as partes. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, saiu em defesa do que entendia como prerrogativas do Poder Legislativo, escudado, nesse sentido, numa das interpretações.
O paradoxo da situação, no entanto, salta à vista. Um parlamentar condenado, com trânsito em julgado, tendo perdido seus direitos políticos, por crimes cuja condenação ultrapassa quatro anos, não poderia, evidentemente, exercer o mandato que lhe foi conferido por um processo eleitoral.
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Tampouco faria sentido recomeçar todo o processo na Câmara, com advogados e direito de defesa, na medida em que esse direito já foi amplamente exercido no STF.
Tal repetição daria lugar a uma crise institucional, como se o Supremo não fosse "supremo", mas derivado de um "processo jurídico" que seria feito pela Câmara, que teria a palavra final.
Não caberia, pois, ao STF dirimir em caráter definitivo uma interpretação de cunho constitucional. A contradição é manifesta.
Não se trata de uma situação corriqueira, não podendo ser equiparável à de crimes menores, como infrações de trânsito. O bom senso exige diferenciar infrações menores de crimes como corrupção passiva e ativa, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, implicando a perda de direitos políticos e elevadas condenações. A improbidade administrativa no manejo da coisa pública é cristalina, possui, aliás, legislação específica que determina a perda de mandato eletivo e o afastamento de cargo público.
Princípios básicos de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, a moralidade da política, a normatização de um Estado propriamente republicano seriam violados. É como se uma legislação especial, que valeria somente para parlamentares, não se estendendo nem ao presidente da República, criasse uma classe de privilegiados, situados acima da lei geral.
A questão tornou-se, nesse embate, tanto mais interessante por envolver questões de princípios e valores constitucionais, que foram arrolados do ponto de vista das diferentes interpretações. Questões essas que visaram a equacionamentos capazes de corrigir antinomias e contradições vigentes no próprio texto constitucional.
No que diz respeito às prerrogativas do Poder Legislativo, foi pouco considerado publicamente um fato da maior relevância: o de que a Câmara dos Deputados poderia ter sustado o processo de seus parlamentares, conforme o disposto pela Emenda Constitucional (EC) 35/2001, que alterou o artigo 53 da Constituição federal. Consta no § 3.º: "Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação". Ou seja, os partidos políticos envolvidos no mensalão não exerceram essa sua prerrogativa, o que significa dizer que qualquer protesto posterior tem sua legitimidade em muito reduzida.
Analisou, com rigor, o ministro Gilmar Mendes em seu voto: "Deve-se salientar, ainda, que o controle político do processo judicial contra parlamentares permanece nas mãos do Congresso Nacional, cujas Casas sempre poderão sustar o andamento da ação penal antes do advento de decisão definitiva, nos termos do artigo 53, § 3.º, da Constituição, com a redação dada pela EC 35/2001. Após a EC 35/2001, o Congresso perdeu a prerrogativa de autorizar o processamento de parlamentares. Todavia o constituinte derivado atribuiu ao Parlamento, até a decisão final do processo, o relevante poder de sustar o andamento de ações penais contra parlamentares". E os partidos nada fizeram, provavelmente por medo de suas consequências políticas perante a opinião pública.
Compatibilizar o texto constitucional foi o esforço levado a cabo pelos ministros. Isto é, as normas da Constituição devem não ser incoerentes entre si, o que é uma aplicação básica do princípio lógico de não contradição. Se o pensamento não pode prescindir desse princípio, sob pena de cair na insensatez, o mesmo vale para a compatibilidade de normas constitucionais. O trabalho do Supremo teve, portanto, de recorrer a questões de fundamentação, apresentando uma hierarquia de seus bens jurídicos maiores, de modo que a sensatez exigida do pensamento pudesse alinhar-se com os maiores princípios republicanos, como a probidade administrativa, a isonomia e a moralidade política.
Eis uma das maiores, se não a maior função de uma Corte Constitucional: mostrar que o Estado Democrático de Direito não pode ser equiparado a processos eleitorais. O voto popular não condena nem absolve ninguém, como alguns mais afoitos têm apregoado. Ele tem apenas a função de eleger representantes por período determinado, segundo a legislação vigente e em obediência à Constituição e aos princípios republicanos.
Da mesma maneira que não faria o menor sentido atribuir a eleições o poder de mudar princípios fundamentais como o da igualdade entre homens e mulheres ou reintroduzir a discriminação religiosa ou de raças, tampouco faz sentido atribuir a processos eleitorais o poder de absolver deputados que cometeram crimes e foram condenados, com trânsito em julgado, pela Suprema Corte, com perda de direitos políticos.
Seguir e aceitar a decisão do STF referente, no caso, à perda do mandato de deputados dignifica a representação parlamentar, em vez de diminuí-la. É a República que está em questão.
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*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR