Nosso amigo, o usurpador 17/01/2013
- Demétrio Magnoli*
A Venezuela já não tem um governo constitucional. Desde o dia 10 de janeiro, data do autogolpe do chavismo, o país encontra-se sob regime de exceção. A chefia de Estado é exercida por um usurpador, Nicolás Maduro, que não representa o povo, mas apenas o desejo do caudilho enfermo, tal como interpretado pelos altos círculos "bolivarianos". O próprio Hugo Chávez, internado em Havana, está sob os cuidados e o controle da ditadura cubana, que gerencia segundo seus critérios as informações sobre a saúde do paciente. Os venezuelanos, inclusive os eleitores do caudilho, não apenas perderam os meios para influir sobre o governo de seu país, como também assistem à cassação de seu direito de saber o que se passa com o presidente reeleito. Quando usa a palavra "democracia" para fazer referência à Venezuela atual, Dilma Rousseff trai os valores que jurou preservar ao assumir a Presidência do Brasil.
Na democracia, a instituição da Presidência da República distingue-se da figura do presidente da República, que é o ocupante eventual do cargo. Nos regimes de caudilho, a distinção conceitual inexiste e, quando imposta por circunstâncias incontroláveis, torna-se fonte de crises dilacerantes. Chávez iludiu o povo ao apresentar sua candidatura à reeleição garantindo, mentirosamente, estar curado de um câncer cujas características jamais foram expostas aos eleitores. Em tese, um candidato chavista alternativo poderia ter disputado as eleições com chances de vitória, mas essa hipótese não foi sequer considerada, pois a estabilidade do regime repousa sobre a figura do caudilho.
Segundo a Constituição venezuelana, na ausência do presidente eleito, o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, deveria assumir provisoriamente a Presidência. O governo provisório nomearia, então, uma junta médica para determinar se a ausência é temporária ou definitiva, neste caso seriam convocadas novas eleições. Mas, em Havana, a cúpula chavista, reunida com Raúl Castro, decidiu-se pela declaração da "continuidade" do governo de Chávez, violando duplamente a norma constitucional. A rejeição da instalação do governo provisório destinou-se a evitar a separação entre a instituição da Presidência e a figura do caudilho. A rejeição da nomeação da junta médica destinou-se a preservar o sigilo sobre a situação médica do caudilho - ou seja, de fato, a consolidar a transferência para o regime castrista da palavra decisiva sobre a política venezuelana.
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Os líderes chavistas justificaram a violação da norma invocando o respeito à "soberania popular", isto é, ao voto do eleitorado que conferiu o novo mandato a Chávez. Efetivamente, porém, entregaram a Presidência a alguém que não foi eleito por ninguém: Maduro, o vice-presidente nomeado por Chávez no mandato que se encerrou em 9 de janeiro. Na Venezuela, vice-presidentes não são eleitos, mas nomeados e demitidos pelo presidente como qualquer ministro. O usurpador instalado no palácio presidencial de Caracas não tem a legitimidade de Chávez nem a de Cabello, que representa o Parlamento. Justamente por esse motivo foi alçado ao exercício da Presidência: Maduro é o reflexo espectral do caudilho, cumprindo a missão de ocupar o vazio político no lugar de um detentor de legitimidade popular - mesmo se esse personagem é um chavista histórico como Cabello.
Não se sustenta o paralelo sucessório com o Brasil do ocaso da ditadura militar. Em março de 1985, hospitalizado às pressas, o presidente eleito, Tancredo Neves, faltou à própria posse. O vice-presidente eleito, José Sarney, assumiu a Presidência por força de um acordo inconstitucional entre líderes civis e militares que evitou a entrega da chefia de Estado ao presidente da Câmara dos Deputados, o oposicionista Ulysses Guimarães. Apesar de tudo, o compromisso apoiou-se nos andrajos de legitimidade de Sarney - que, na condição de companheiro de chapa de Tancredo, triunfara no Colégio Eleitoral. Na Venezuela, em contraste, o cargo de presidente é exercido por um personagem carente de legitimidade democrática: Maduro só ocupa a cadeira presidencial porque, desde que Chávez o sagrou como "sucessor", se converteu no "corpo substituto" do caudilho.
Regimes revolucionários não admitem os limites impostos pelas leis. Entretanto, até hoje o chavismo se moveu na esfera de uma legalidade relativa, sempre ampliada e continuamente reinterpretada. Agora, uma Corte Suprema dominada por juízes chavistas bem que tentou preservar as aparências legais, mas só conseguiu cobrir-se de ridículo. O tribunal não podia prorrogar o mandato de Chávez, algo flagrantemente arbitrário, nem proclamar que um novo mandato teve início sem a posse do presidente, pois isso implicaria a vacância da Vice-Presidência e dos demais cargos ministeriais. Os juízes "solucionaram" o dilema pela declaração onírica de que, sob o "princípio da continuidade administrativa", o antigo mandato prossegue como um mandato novo. O vulgar truque circense serve para conferir um verniz legal à permanência do vice-presidente e dos outros ministros nos cargos que ocuparam no mandato presidencial encerrado.
O dirigente chavista Elías Jaua definiu o autogolpe chavista como "um marco na construção da democracia": a comprovação de que "o povo manda por cima dos formalismos da democracia burguesa". O Paraguai foi corretamente suspenso do Mercosul após um processo parlamentar de impeachment que respeitou a letra da Constituição, mas violou seu espírito ao negar ao presidente o direito à ampla defesa. A Venezuela é um caso muito mais grave, pois o autogolpe viola tanto a letra quanto o espírito da Constituição. O governo brasileiro, contudo, indiferente aos imperativos básicos de coerência, abraça-se ao usurpador e sacrifica a cláusula democrática do Mercosul às taras ideológicas do PT. O nome disso é corrupção moral.
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*SOCIÓLOGO, DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR