Em seu primeiro dia como papa, Francisco pediu que o levassem ao hotel onde havia se hospedado antes do conclave, pegou seus pertences e pagou, ele mesmo, a conta. A trivialidade do gesto combina perfeitamente com a imagem que se disseminou sobre o novo pontífice, a de um homem simples e austero, que cozinha sua própria comida e dispensa os luxos episcopais. Desde os primeiros instantes após sua eleição, Francisco envia fortes sinais do que espera dos integrantes da Igreja que comandará daqui em diante.
A inédita chegada de um jesuíta ao Trono de Pedro - e de um jesuíta que não é da Europa - evidencia a disposição de realizar mudanças significativas na condução da Santa Sé no momento em que ela atravessa crise de extrema gravidade. As relações dos jesuítas com o Vaticano sempre foram marcadas por conflitos. A Companhia de Jesus, fundada em 1534, enfrentou diversas vezes a alta hierarquia da Igreja - que, na visão da ordem, se apegava aos privilégios das cortes europeias enquanto negligenciava os fiéis nos confins do mundo. Os jesuítas lançaram-se, com disciplina quase militar, à missão de espalhar o Evangelho onde quer que fosse. Foram a linha de frente contra a Reforma empreendida por Lutero no século 16. Em seu trabalho se misturam o absoluto zelo doutrinário com a capacidade de adaptação às circunstâncias.
Por isso, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, agora como papa Francisco, justifica a expectativa de uma intervenção decisiva na disputa de poder que se trava na Cúria Romana, isto é, a administração da Igreja. Quando era arcebispo de Buenos Aires, Francisco denunciou o carreirismo e o clericalismo na cúpula vaticana. Agora terá a oportunidade de mudar esse quadro, conforme provavelmente esperava seu antecessor, Bento XVI - que renunciou ao cargo esperando que seu gesto fosse forte o bastante para dar um choque na Igreja, já que ele mesmo se sentia sem forças para tentar debelar a crise.
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O projeto renovador, ademais, manifestou-se na escolha de um papa de fora da Europa, algo que não ocorria havia mais de um milênio. A maioria dos cardeais procurou um nome que não estivesse contaminado pela atmosfera de intrigas e segredos que tomou a Santa Sé nos últimos tempos, e Bergoglio era justamente um cardeal que fazia questão de comparecer ao Vaticano somente quando fosse absolutamente necessário.
Segundo o Vaticano, Bergoglio escolheu o nome Francisco porque quis se referir a São Francisco de Assis, conhecido por seu desapego ao mundo material e por sua dedicação aos pobres, que é a marca do novo papa. Mas o nome Francisco se refere também a São Francisco Xavier, cofundador da Companhia de Jesus e chamado de "Apóstolo do Oriente", por sua intensa ação missionária na Ásia. Francisco, o papa, também crê num amplo trabalho de disseminação do Evangelho e de conexão com os fiéis em toda parte, principalmente os pobres, defendendo-os do poder político secular, como fez várias vezes na Argentina ao criticar o casal presidencial Néstor e Cristina Kirchner por, segundo suas palavras, "habituar" os argentinos à miséria e à violência.
O fato de Francisco ter vindo da Argentina - o "fim do mundo", como ele mesmo disse, referindo-se à sua situação geográfica - é importante porque indica uma atenção especial ao continente onde há mais católicos e que é "a região mais desigual do mundo", nas palavras do próprio Bergoglio. Para ele, uma Igreja que se fecha em si mesma, isto é, que não consegue ir além dos muros do Vaticano e que perde o contato com seus fiéis, "torna-se ultrapassada". A crescente redução do número de católicos no mundo parece comprovar seu diagnóstico.
A idade de Francisco, 76 anos, perto de fazer 77, sugere um pontificado curto para a tarefa que tem pela frente, mas é preciso lembrar que o pontífice contemporâneo que maior influência teve sobre os rumos da Igreja, João XXIII, comandou os católicos por menos de cinco anos. A Igreja espera que Francisco, homem humilde e tenaz, dê o impulso necessário para restabelecer a confiança entre a cúpula eclesiástica e os fiéis, além de disciplinar a administração da "Barca de Pedro" nas turbulentas águas do século 21.