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O Outro Lado Porque tudo tem dois, menos a esfera.

O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Sobre beijos e tapas
30/03/2013 - Blog de Reinaldo Azevedo - Veja.com

Quando o cardeal Bergoglio se ajoelhava diante de pacientes de AIDS e quando o agora papa repete o gesto diante de presidiários, vemos a Igreja Católica a reconhecer a plena humanidade dos que mais sofrem e dos que foram excluídos, ainda que, no caso desse segundo grupo, na origem do mal que os aflige, existam escolhas erradas, crimes e pecados. Francisco nos fala, no entanto, de um Deus que perdoa — havendo a disposição de não errar mais —, ainda que os infratores devam acertar suas contas com as leis dos homens.

A Igreja abraça, nunca rechaça; convida ao perdão e ao arrependimento em vez de condenar; acolhe em vez de excluir. Mas isso não ignifica que ela renuncie a seus fundamentos. É compreensível que, na era do pragmatismo tosco, uma religião que repudie o pecado (para ficar no vocabulário religioso), mas acolha o pecador cause certo estranhamento. Quando Francisco lava os pés dos presidiários, não está condescendendo com seus crimes. Tampouco está dizendo que as leis que os encarceraram são injustas. Ele os está abrigando na condição de filhos de Deus; ele está reconhecendo que nem o crime lhes tirou a humanidade.

Então isso tudo nos será assim tão estranho? Acho que não! Os que somos pais sabemos que a difícil tarefa de educar consiste em abraçar os filhos, mas não os seus erros. O exercício do amor incondicional — e não vejo como se possa ser pai e mãe de outro modo — repudia o erro, mas acolhe os errados.


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“Ah, mas essa Igreja que se ajoelha é puro exercício de hipocrisia…” Será mesmo? Os governos das nações mais ricas da Terra, os potentados empresariais, as organizações não-governamentais as mais poderosas, nem todos esses entes reunidos conseguem fazer o trabalho social que faz a Igreja Católica mundo afora. Se ela fosse apenas uma entidade benemerente, já seria uma expressão formidável do humanismo. Ocorre que ela convida também a uma ética que transcende a sua própria obra social. E é aí que começam os questionamentos. “Mas por que não concorda com tal coisa? Por que censura aquela outra?” Porque tem valores derivados daquela que considera ser a verdade revelada. E não vai mudar.

É uma farsa, por exemplo, essa história de que a Igreja rejeite os gays. Ela convive com a realidade de fato. Mas não vejo como — e não há quem veja — ela possa igualar os casamentos hétero e homossexual porque isso fere o seu entendimento essencial de como deva se formar uma família. Não vai acontecer. O norte da instituição continuará a ser o de sempre. Mas não se tem notícia de que homossexuais foram expulsos de instituições católicas ou moralmente agredidos em suas dependências.

O papa que beija os enfermos, os transgressores, os que estão à margem atualiza a mensagem do Cristo. É um beijo a favor dos homens, mesmo daqueles que não comungam de sua crença — a exemplo dos dois muçulmanos convidados a participar da cerimônia.

Agora as atrizes
Alguns gostariam, para que pudessem ver confirmados seus próprios preconceitos, que eu saísse aqui a condenar as mulheres que andaram trocando beijos públicos para protestar contra o deputado Marco Feliciano. “Ah, olhem lá, o Reinaldo, aquele reacionário…” Mas eu não condeno, não! Se o Brasil inteiro sair se beijando — desde que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias possa fazer seu trabalho sem ser atacada por um tropa de choque —, está bom para mim. Mas também quer dizer que eu aprove.

Eu quero é ver respeitadas as instâncias da democracia e do estado de direito. Eu torço é para que a imprensa brasileira pare de tratar desordeiros como humanistas exemplares. E que se note: não são desordeiros porque defendam casamento gay ou sei lá o quê, mas porque impõem a sua vontade ao arrepio dos fundamentos democraticamente pactuados.

De toda sorte, reitero: pessoalmente, não gosta da modalidade “beijo contra”. Acho contraproducente que ele se transforme numa das expressões possíveis do insulto. Penso que nem instrui nem convence ninguém. Recebe os aplausos dos já convertidos, mas tende — e eis um grande problema — a gerar mais intolerância do que o contrário. Até porque as atrizes que representam, aí, o papel de vanguardistas não são, até onde se sabe, lésbicas. O beijo é exibido como um desafio ao padrão dos “caretas” e talvez contribua para reforçar preconceitos, em vez de amainá-los. O fato de serem heterossexuais se comportando como homossexuais introduz uma vertente de farsa e de espetacularização do confronto que, intuo, contribui pouco com a causa.

O charme principal dos que pedem a cabeça de Feliciano é sua condição de minoria supostamente ofendida pelas ideias do deputado. Então vamos ver que “minoria” é essa. O casamento gay já foi considerado constitucional pelo Supremo. Pessoalmente, já escrevi, não tenho nada contra, mas é evidente que o tribunal ignorou a letra do próprio texto e legislou em lugar do Congresso. Não há jurista digno desse nome que ignore isso, embora a maioria se cale por receio da patrulha. A mais importante emissora do país, a que tem mais telespectadores, exibiu um beijo gay de duas atrizes caracterizadas com as vestes das cerimônias católicas de casamento. Do outro lado da tela, milhões de pessoas assistiam àquela, vá lá, provocação estudada.

Ainda que minoria na sociedade, resta evidente que as reivindicações dos gays e sua visão de mundo têm amparo na Justiça e são onipresentes naquilo que já se chamou “cultura de massa”. Estão na maior emissora de TV do país, uma concessão pública — que existe, em termos estritamente legais, por autorização desse público. E o público, ora vejam!, é majoritariamente contrário ao casamento gay. Insisto: a maioria dos brasileiros que conferem legitimidade ao Supremo e autorizam as concessões de TV (por meio de procedimentos legais) é contra a decisão tomada pelo tribunal e o valor popularizado pela emissora.

Não vou entrar nas minudências de por que as coisas são assim (não neste texto), mas a democracia tem, sim, dessas coisas. E isso não é necessariamente ruim. A maioria dos brasileiros talvez seja favorável à pena de morte, por exemplo, mas a lei não passaria no Congresso e seria repudiada pelo Supremo. E acho bom que assim seja. Mas isso fica para outra hora.

O que estou dizendo, meus caros, é que os tais “beijos contra” , atenção para isto!, como parte dos esforços para retirar Feliciano da comissão, revelam, então, uma à primeira vista insuspeitada dimensão de intolerância — que vem a ser o exato oposto daquilo que proclamam.
— Olhem aqui, a gente vai beijar na boca para deixar claro que aquele cara não pode ficar lá.
— Mas não pode por quê?
— Não pode porque ele é contra casamento gay!
— Mas ele não pode mudar a decisão do Supremo!
— A gente sabe que não pode. Mas ele é contra!
— Mas ele tem o direito de ser contra!
— E a gente tem o direito de protestar contra ele!
— Mas não de impedir o funcionamento da comissão!
— Seu reacionário!
— Ah, então tá…

Há o beijo que inclui e aquele que pretende valer por um tapa. Um leva ao esclarecimento; o outro, ao obscurantismo influente.


  

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