A fala de Anzor 23/04/2013
- Blog de Reinaldo Azevedo - Veja.com
As intervenções públicas de Anzor Tsarnaev, pai de Tamerlan e Dzhokhar, os dois rapazes que praticaram os atentados terroristas de Boston, revelam uma construção mental sob medida para idiotas que adoram viajar em teorias conspiratórias, especialmente nesses tempos de Internet, em que a verdade mais facilmente se confunde com a versão que ganha um maior número de adeptos.
Vejam bem: os irmãos só são tratados como “suspeitos” de envolvimento com os atentados por uma questão técnica: afinal, não se tem a imagem dos dois com as bombas na mão (só com as mochilas), e ainda não há a palavra final da Justiça.
Mas o conjunto de evidências não deixa a menor dúvida. Os eventos que se seguiram na fase da caçada policial são por demais eloquentes. Esses dois atacaram a polícia com explosivos, atiraram contra policiais, mataram um deles.
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Mesmo assim, o pai insiste: tudo não passaria de uma armação porque, ora vejam!, eles seriam “dois bons muçulmanos”.
Eu não tenho a menor dúvida de que bons muçulmanos não fazem essas coisas absurdas, como sempre tive a certeza de que bons cristãos não explodiam bombas na Irlanda do Norte.
Ocorre que, em razão de questões locais e de derivações teratológicas dos fundamentos éticos do cristianismo, cristãos explodiam bombas na Irlanda do Norte, sim! Não adiantava fingir que eram agnósticos ou budistas.
Da mesma sorte, em razão de uma leitura fundamentalista da Islã que ganhou força nas duas primeiras décadas do século passado, ser “bom muçulmano”, em muitos casos, passou a significar eliminar o outro em nome da purificação da religião.
Atenção! Isso nada tem a ver com Israel. A Irmandade Muçulmana foi criada em 1928. Seu fundador, Hassan al-Banna achava que o Ocidente estava conspurcado independentemente da existência de um estado judeu.
Seu sucessor, Sayyid Qutb, resolveu radicalizar. Assim, ser “bom muçulmano” passou a ter um significado muito particular para os extremistas: eliminar os adversários para que a humanidade pudesse ser livre para escolher o verdadeiro Deus…
Há, então, uma diferença nada irrelevante entre o terrorismo irlandês e o muçulmano: o palco daquele era restrito, definido pela luta nacionalista. Este outro entende que seus domínios se estendem a todo o planeta.
Aqui, abro um parêntese (retomo o fio depois) para uma nota oportuna, à margem do texto principal.
Esquerdistas e extremistas islâmicos não se uniram por acaso em muitas causas. Também aqueles acreditam que uma espécie de nuvem de inconsciência impede o ser humano de ver a verdade (qual verdade?).
Também eles estão permanentemente preocupados em denunciar manipulações (no caso, a do capital), que afastariam os indivíduos de seus reais interesses.
Também eles acreditam que só haverá liberdade de escolha quando as pessoas não… puderem escolher o que acham errado!
E essa visão falaciosa do mundo já está em Marx, não é coisa de epígonos, não. Fecho o parêntese. Retomo.
A depender do que queira dizer Anzor, “bons muçulmanos” fazem o que fizeram os dois irmãos.
As acusações do pai não são neutras, coisa de quem quer apenas proteger as crias. Poderia expressar a sua incredulidade em outros termos: “Meus filhos eram bons, não fariam isso; deve haver algum equívoco”.
Poderia, em suma, expressar a sua dor e até a sua revolta em linguagem não militantes.
Ao afirmar, no entanto, que se montou um “espetáculo de Hollywood”, que tudo não passa de uma “armação das forças especiais americanas”, que há uma tramoia para esconder a verdade dos fatos, aí deixa de falar o pai e começa a falar o aliado, quando menos, intelectual de dois terroristas, seguindo o padrão habitual nesses casos.
E que padrão é esse? A culpa é da vítima.
Ainda que seus filhos tenham lançado bombas contra a polícia, ainda que tenham atirado contra policiais, com um morto, ainda que haja testemunhas da violência da dupla durante a fuga, nada disso parece suficiente para o, atenção para a palavra, “militante” Anzor: os dois, sugere a sua fala, deveriam ter bons motivos para agir assim; já estariam, então, sob os efeitos da manipulação do serviço secreto americano, daquele “mal” que toma conta da humanidade…
Infelizmente, e isso resta evidente, o pai se mostra um admirador das ações dos filhos.
Os dois estavam nos EUA, estudavam em excelentes escolas, tinham um futuro assegurado — o que a Chechênia nunca pôde lhes oferecer —, mas Anzor pretende que são as verdadeiras vítimas.
Afirmei no sábado que, se os dois terroristas estavam ligados a uma rede, isso seria muito ruim; se não estavam, isso pode ser ainda pior.
Esse rancor insano revelado pelas palavras de Anzor — somado a uma visão torta de religião, segundo a qual o outro só é o outro porque contaminado pelo pecado, do qual tem de se livrar — estimula um “faça você mesmo o seu atentado”.
Nesse caso, não é mais preciso que células terroristas se desloquem de um país para outro para praticar insanidades, o que, em tese ao menos, os serviços de segurança podem detectar.
Ao contrário: o risco terrorista passa a existir no seio da própria sociedade, entre pessoas aparentemente integradas.
Nesse caso, pouco importa se o indivíduo obteve ou não a cidadania no país que o abrigou ou é um nativo do lugar.
O que conta é a sua cidadania espiritual, num reino que não é deste mundo.
Tudo indica que os ataques perpetrados pelos dois irmãos são, infelizmente, do tipo mais perigoso, que se insinua e se instala entre os homens comuns.
Como enfrentá-lo? Eu, claro!, não tenho a resposta. Quem dera! Voltarei ao assunto em outros posts com considerações que, espero, ajudem a iluminar o debate.
Para encerrar
Uma pergunta aos imbecis que sustentam que tudo não passa de uma grande armação e que os EUA acusam os dois irmãos sem provas.
Muito bem: isso me faz supor que essa gente tenha alguma hipótese.
Com que propósito, então, os serviços de segurança e a polícia armariam essa cena? Para esconder o quê? Não deve ser apenas para provocar a ira de radicais chechenos, né?