O país da divergência perdida 03/05/2013
- Blog de Reinaldo Azevedo - Veja.com
Por que tanto as esquerdas tradicionais (ou seus herdeiros de pensamento) como antigas e sólidas reputações conservadoras estão hoje em dia juntas, a defender uma mesma agenda?
Vocês notaram como pessoas as mais díspares, das origens as mais variadas, ligadas aos setores os mais diversos, se tornaram ecologistas?
Repararam como a defesa da legalização do aborto se tornou um dos denominadores comuns tanto daquele que se quer ainda um comunista revolucionário como de seu suposto antípoda de classe?
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Perceberam como o tema da descriminação da droga mobiliza parte da academia, a quase totalidade da imprensa (da base à cúpula), os que se querem ultraliberais e também os esquerdistas?
Já se deram conta de que as questões relacionadas à sexualidade parecem, a se dar crédito àquilo que se lê na grande imprensa, navegar no mar calmo do consenso, exceção feita, claro!, àqueles que são tachados de “fundamentalistas religiosos”?
Já atinaram como as cotas raciais juntam bancário e banqueiro?
E outros temas poderiam ser aqui listados, a unir gregos e troianos, como o ódio ao agronegócio, a defesa dos quilombolas, a tolerância com as violências do MST… Por quê?
Um inocente e um sujeito de não muito boa-fé poderiam dar a mesma resposta: “Ah, Reinaldo, é porque essas questões não têm ideologia; são apenas matéria de bom senso; são bens universais”.
Uma ova! No mundo inteiro, temas dessa natureza dividem a sociedade, dividem os partidos, dividem até mesmo as ideologias.
Qual é o busílis no Brasil? O que se passa em Banânia? Vou tentar responder à questão. Antes, algumas considerações gerais.
Liberdade e igualdade
Por mais que repudie hoje em dia — e já há muito tempo — o ideário da esquerda socialista, reconheço que, por muitos anos, houve esquerdistas sinceros, e talvez os haja ainda, não sei, embora eu não compreenda que alguém possa, racionalmente, sobrepor o valor da igualdade ao da liberdade.
É claro que, até certo ponto, ambos são conciliáveis, e a medida possível da igualdade para que a liberdade não comece a pagar seu preço é aquela que deve haver perante a lei.
Se a própria lei, no entanto, como já começa a acontecer no Brasil sob o silêncio cúmplice e unânime das forças políticas, estabelece a desigualdade como fundamento, sob o pretexto de corrigir injustiças, é a liberdade que está potencialmente ameaçada.
Nunca houve um regime socialista e ao mesmo tempo democrático porque só se pode impor a igualdade violando a nossa natureza.
Disse-me um estudioso da alma humana dia desses, ao estabelecer diferenças entre várias correntes da psicologia: “Eles [referia-se a correntes às quais se opõe] ficaram bravos conosco porque demonstramos que o homem se parece mais com um ratinho do que com Deus”.
Em muitos aspectos, acho que ele está certo, e é por isso que as terapias comportamentais tendem a ser mais eficientes do que aquelas que pretendem nos virar do avesso.
Mas uma coisa não é menos evidente: desde Prometeu, tudo o que há por aí só há porque temos a ambição de ser Deus — e operamos esses milagres com aquela pequena parcela que nos diferencia do rato.
O homem só cabe num molde, o da liberdade, porque a natureza (ou o Altíssimo, para os religiosos) não lhe deu outra escolha que não… poder escolher.
O livre-arbítrio, assim, nos condena à liberdade — inclusive, na visão religiosa, à liberdade do pecado.
Não deixei de ser esquerdista (já faz tempo!) porque “Ah, sei lá, cansei dessa história!”.
Feliz ou infelizmente, sempre fui um pouco mais grave do que isso. Deixei porque entendi, como entendo, que aqueles fundamentos violavam essa nossa segunda natureza.
Mas volto ao ponto: compreendo, não obstante, embora repudie o primado, que haja esquerdistas sinceros, realmente empenhados em garantir, até por amor equivocado à humanidade em alguns casos, a todos os bichos humanos a mesma quantidade de ração.
Eliminados os burgueses e aproveitadores, o socialista original acredita que o homem se moldará à imagem e semelhança de uma sociedade, então, justa.
Sempre deu em desastre e em milhares ou milhões de mortos!
Muito bem! Renunciei precocemente a essa tolice e às ideias que aí derivaram, invariavelmente autoritárias e justificadoras de violência, como se viu ao longo da história e como temos visto na América Latina, por exemplo, com essa mistura exótica de “socialismo”, nacionalismo chulé e pasta de coca.
Mas, reitero, há quem ainda genuinamente acredite naquele ideário.
Agora, ao ponto
Mas e os “neoprogressistas”, hein? E aqueles que aderiam àquela agenda supostamente universal e sem pecados lá do primeiro parágrafo?
O que buscam com a sua conversão à causa da ecologia, da legalização do aborto, da descriminação da droga, da igualdade de gêneros (ou seja lá como se chame), das cotas, dos índios, dos quilombolas, dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-aquilo-que-nos-faria-felizes (seja lá o que for…)?
Noto que não é uma adesão que permite o debate e o exercício do contraditório. Nada disso!
A exemplo do que acontece com toda militância sectária, a divergência é demonizada, reduzida à dimensão de uma caricatura.
Um projeto que endurece a lei antidrogas, como o de Osmar Terra (PMDB-RS), é tratado como se fosse uma peça de uma escalada fascista. Acusam-no de criar até um cadastro de consumidores, o que é falso.
Um projeto de Decreto Legislativo que derruba uma portaria realmente fascistoide de um conselho profissional ganha pecha de “projeto de cura gay”, e isso, que é uma militância, não um fato, é oferecido ao leitor como se fosse notícia.
Durante uns bons cinco anos, as grosseiras mistificações sobre o aquecimento global — tentem saber o que restou das antevisões do filme de Al Gore, o bobalhão espertalhão — foram vendidas como verdades universais, não passíveis de questionamento.
Os críticos daquela religião pagã passaram a ser chamados de “os céticos”, como a identificar uma minoria perversa que não estava preocupada com a humanidade.
Inventaram até a figura de um pobre urso-polar náufrago, lembram?, que estaria à deriva num pedaço de gelo. Ursos brancos são exímios nadadores.
O fenômeno da adesão às “causas progressistas” é mais ou menos universal (ao menos no universo das sociedades ainda democráticas), mas ganha a dimensão de uma unanimidade (falsa!) aqui no Brasil. Por quê?
E agora vem a minha resposta, talvez um tanto surpreendente.
Porque, com efeito, alguma sólidas reputações conservadoras (até reacionárias em alguns casos) e outras tantas que, mesmo sem jamais ter sido liberais ou “de direita”, assim foram tachadas pelo PT, decidiram se tornar ESQUERDISTAS A CUSTO ZERO.
Há até quem — e o modelo internacional é George Soros — tenha percebido nesse militantismo excelentes oportunidades de negócios.
Ninguém mais precisa abrir mão de privilégios herdados ou conquistados para, afinal de contas, “ser de esquerda” ou ser considerado um “progressista”.
Basta a adesão a essas causas em trânsito para se qualificar como defensor de uma agenda modernizadora, demonstrando, então, ao petismo — que hegemoniza essa processo — que está de boa vontade com os novos tempos e aberto às suas vicissitudes.
Os bancos não querem saber de um spread, digamos, ecológico. Mas adoram reciclar papel e financiar profetas da floresta.
A realidade assume dimensões às vezes patética.
Não tenham dúvida: se a “mídia” (como “eles” chamam), especialmente as TVs, fosse dominada pelo PT, como o partido pretende (e fará um dia, dada a marcha), ela seria certamente menos abortista, menos ecologista, menos ateísta, menos gayzista, menos cotista, até mesmo MENOS ESQUERDISTA do que a que temos.
Há uma renúncia quase generalizada ao ideário que construiu a imprensa livre em nome das “causas” supostamente universais.
E ninguém pode ser universal fazendo as vontades de corporações de ofício ou de corporações do pensamento.
Ninguém pode ser universal cumprindo uma pauta que é de natureza sindical — ainda que sejam sindicatos, sei lá, de comportamento.
Ninguém pode ser universal atribuindo a entes de razão o poder de definir a verdade.
Essas causas estão servindo para uma espécie de lavagem de reputação — reputação que, em muitos casos, era originalmente limpa, mas foi sujada pelo PT.
Tenho uma enorme admiração por FHC, por exemplo, como todo mundo sabe, mas dou graças a Deus por não ter sido o ex-presidente de agora o presidente de 1995 a 2002.
Naqueles oito anos, ele não temeu enfrentar as hordas da desqualificação e fez, no mais das vezes, a coisa certa. Hoje, parece empenhado em conquistar a simpatia de seus detratores.
É um fenômeno curioso, que merece estudo.
Caso os jornais entregassem a notícia de ontem sobre o projeto de Decreto Legislativo para Emir Sader redigir, corria-se, sim, o risco de um texto mais analfabeto, mas ele não teria feito coisa muito diferente daquilo que foi noticiado.
Boa parte da grande imprensa opta por uma abordagem cada vez mais próxima daquela feita pelos blogs sujos, financiados por estatais.
Aproximam-se perigosamente tanto na pauta dita “progressista” como no oficialismo.
É claro que os petistas, assim, nadam de braçada. Até mesmo a sua pregação em favor da impunidade já encontra guarida na cobertura cotidiana da imprensa.
Dias antes de ser publicado o acórdão, a turma de Zé Dirceu pautou quem quis, como quis, com as temas que quis. E o alvo era sempre o STF.
Caminhando para a conclusão
Por que tantos aderiram com tanta energia à dita “pauta progressista”?
Porque, no fim das contas, isso não lhes custa grande coisa — a rigor, não custa nada! Porque, em muitos casos, não havia, então, o apego a um conjunto de ideias, de convicções, de valores.
Ser, como disse, “esquerdista a custo zero” nem chega a caracterizar a cessão dos anéis para não perder os dedos; nem chega a ser uma estratégia deliberada de mudar para conservar.
É só a nova configuração que assume o negócio.
É claro que isso não é irrelevante. Essa maçaroca indistinta de “progressismos” tem seu preço, sim.
Ela impede, por exemplo, a formação de um partido solidamente conservador, como existe em todas as democracias do mundo.
E só existe porque a sua existência, na ecologia da política, é a garantia de sobrevivência do próprio sistema.
Ou terminamos na Venezuela, no Equador, na Bolívia…
Vive-se a ilusão de uma sociedade sem divergências. E se acaba chamando “progresso” a essa soma orgulhosa e ufanista de atrasos.
Esta poderia ser a crônica, e já seria lamentável, de uma capitulação, mas acabou sendo a crônica de um oportunismo.
Os que podiam fazer história estão se deixando pateticamente fazer pela história.
Que a irrelevância e o esquecimento lhes sejam leves.