Governos autoritários nunca traem sua natureza. O verniz democrático e de respeito ao Estado de Direito, quando existe, dura apenas o tempo necessário para a completa instalação de um regime de permanente exceção. As leis são criadas, alteradas e interpretadas de acordo não com as demandas legítimas dos cidadãos, mas segundo as conveniências dos autocratas, cujo único objetivo é manter-se no poder e impedir que ele seja contestado. É precisamente o caso da Bolívia de Evo Morales, cujo Judiciário recentemente decidiu que o presidente pode concorrer a uma nova reeleição, mesmo que a Constituição diga expressamente que não.
Eleito pela primeira vez em 2005, Morales foi reeleito em 2009, já sob uma nova Constituição - que prevê o direito a apenas uma reeleição. Na avaliação do Tribunal Constitucional, porém, o que aconteceu antes da promulgação da Constituição simplesmente não vale, porque o país foi "refundado". Logo, de acordo com essa narrativa mitológica, corroborada pela mais alta instância constitucional da Bolívia, Morales elegeu-se apenas uma vez e, portanto, está apto a tentar um novo mandato.
Não que Morales estivesse muito preocupado com o desfecho do caso, porque o Tribunal Constitucional é formado por magistrados que lhe são submissos, graças ao pitoresco sistema pelo qual foram escolhidos. A atual Constituição estabeleceu que todos os magistrados das principais instâncias judiciais do país têm de ser eleitos pelo voto direto dos cidadãos. A aparência democrática esconde o fato óbvio de que juiz não é político e não pode, por definição, estar à mercê das forças que viabilizaram sua eleição. Ademais, a escolha de um magistrado deve respeitar méritos técnicos, algo que o eleitor médio não tem condições de avaliar. Por fim, mas não menos importante, os candidatos são selecionados pelo Congresso - que é dominado pela tropa de choque de Morales. Logo, o sistema foi criado para, em nome da democracia, facilitar o controle do Judiciário por Morales.
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Na eleição judicial de 2011, a primeira da história, os votos nulos e em branco somaram 60%, mostrando o ceticismo do eleitor boliviano sobre o modelo. Apesar do fiasco, os candidatos eleitos foram confirmados, e foram esses os juízes que aceitaram o papel de avalistas da violação escancarada da Constituição que eles juraram respeitar.
A própria Constituição, aliás, foi elaborada e aprovada sob uma atmosfera que nada lembra a de uma verdadeira democracia. A "refundação" da Bolívia se deu com uma Assembleia Constituinte que se trancou num quartel do Exército e que só contou com parlamentares governistas. Diante de protestos da oposição, que Morales tratou logo de qualificar como "conspiração golpista", os constituintes aprovaram um texto que muitos deles nem sequer haviam lido. Não havia necessidade, pois o texto constitucional, ao que parece, depende muito menos de sua letra e espírito e muito mais das conveniências do governo para ser seguido e respeitado.
Se eleito em 2014, Morales governará até 2020, totalizando 15 anos de governo. E não seria exagero imaginar que, até lá, ele encontrará meios de extrair da Constituição as justificativas necessárias para esticar mais um pouco sua temporada no poder, bem ao estilo de seu mentor, o falecido Hugo Chávez. Pois a "democracia" bolivariana é movida a casuísmos, intimidação e estado de permanente mobilização contra o "inimigo da pátria", geralmente os Estados Unidos e seus "lacaios", algo que serve para justificar toda sorte de arbitrariedades contra a oposição e as instituições.
Seguindo esse roteiro, Morales acaba de expulsar da Bolívia a Usaid, agência americana de ajuda internacional, acusando-a de conspirar contra seu governo por exercer "interferência política em sindicatos de camponeses e outras organizações sociais" que são focos de insatisfação. Na narrativa de Morales, se há oposição na Bolívia, ela só pode ser resultado de um complô americano, e não de legítimo descontentamento popular.