De Gutenberg à televisão 21/05/2013
- MARIO CESAR FLORES*
São comuns, se não mais comuns na nossa TV os programas de padrão medíocre, influentes na formação do ânimo coletivo. É a qualidade condicionada pelas injunções do mercado de consumo de massa, estendido ao entretenimento, à informação e à propaganda - problema corrente no mundo onde a mídia é livre.
No topo da desconstrução cultural temos os reality shows, que, valendo-se da licenciosidade permissiva do povo, espetacularizam a anormalidade, atribuindo-lhe uma falsa distinção que a faz até desejada.
Em nível similar os programas de auditório, com matérias de gosto discutível, algumas supostamente cômicas beirando o grotesco, competições de umas poucas atraentes a em geral rocambolescas e entrevistas em que os entrevistados, mesmo quando deveriam estar constrangidos, aparentam satisfação por aparecerem na TV - hoje uma ânsia popular paranoica.
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Na música popular, o acústico sofrível (eventualmente bom...) associado ao visual espalhafatoso suplanta os programas de músicas bonitas, tocadas e cantadas sem aparência pessoal e coreografia exóticas; quanto à erudita, poucos programas, em emissoras de audiência limitada.
Novelas e filmes apresentam por vezes conteúdo positivo - nas novelas, em geral refletindo mazelas da sociedade -, embora seja mais comum a banalidade que diverte e empolga a grande massa.
E no esporte, o futebol, refúgio do fim de tarde nos domingos, é prejudicado por entrevistas e comentários vazios e pela tortura acústica dos gooooooooooools intermináveis.
Acrescente-se a esse cenário a ênfase esfuziante atribuída ao que responde ao ânimo folgazão do brasileiro - ênfase compreensível, já que a TV precisa de audiência para viver.
Carnaval, réveillon, praia ensolarada, feriadão e futebol são privilegiados com programas, imagens e comentários sedutores e frequentes.
Anos-luz acima da atenção que merecem o trabalho e o estudo, o meio ambiente, a cultura e a arte, a ciência e a tecnologia, que inspiram programas até bem montados, mas, como não atraem a grande massa, são apresentados em horários de fraca audiência.
Passando aos noticiários, existem alguns clássicos, de boa qualidade informativa e de apresentação competente e simpática.
Mas mesmo esses são comprometidos pela enxurrada de publicidade enfadonha e não escapam da avidez popular pelo anormal: fatos que mereceriam minutos se estendem por dias ou semanas, com cenas repetidas e detalhes sem interesse.
Julgamento de criminoso vira novela - e a escolha do papa, disputa internacional com direito a torcida patriótica...
Nos noticiosos (?) sensacionalistas, estruturados sobre a anormalidade do cotidiano, convém ter o controle à mão.
O importante neles é a combinação espetacularizada da imagem com a palavra: escândalos, acidentes e catástrofes, violência e crimes são apresentados em estilo de auto de fé midiático, em que a exaltação do trágico, a repetição de frases de impacto e o linguajar apelativo (qualquer público é "galera", dinheiro é "grana"; e o que seria "cara-pálida"?) turbinam o sensacionalismo.
Não surgindo fatos novos sensacionalizáveis, os superados são mantidos vivos: o mercado de consumo do anormal tem de ser saciado.
Agora, a propaganda. Temos quadros inteligentes e divertidos, mas são frequentes os de gosto visual, acústico e mental medíocre - a exemplo da propaganda que trombeteia a tecnologia estimuladora da frivolidade consumista de quem não entende o que é dito, mas é prazerosamente seduzido a comprar o que não entende e não precisa.
Você liga a TV para assistir a um noticiário e é inundado por propaganda de acústico e ótico precários, pela sequência berrada dos "xis e 99", ilusão publicitária que, na realidade, significa "xis + 1": é a TV no mundo consumista.
De passagem: no tocante ao padrão mental, a "propaganda política obrigatória" não é melhor (sejamos complacentes...) do que a comercial, com uma atenuante: é esporádica e não se estende à TV por assinatura...
Há 500 anos a imprensa de Gutenberg estimulou o conhecimento na diminuta minoria que sabia ler, da população global de 1 bilhão de pessoas.
A ascensão cultural impulsionada pela modesta imprensa da época era restrita a essa minoria, mas seus efeitos positivos se estenderam a todos, com o Renascimento, a Reforma e o Iluminismo.
Hoje temos no mundo de 7 bilhões e a TV, que chega à grande massa, dispensando saber ler e, valendo-se da combinação do verbal com a imagem, estimula e diverte o ânimo folgazão do povo, sensacionaliza e banaliza a anormalidade, cria necessidades desnecessárias, constrói aiatolás na política, reis, imperadores e fenômenos no esporte e espetaculariza o cristianismo televisado.
Diferente da imprensa de acesso limitado à escassa minoria leitora de há 500 anos, a TV é democrática, diverte e informa a população em geral.
Mas não vem apoiando a ascensão cultural dessa imensa audiência na dimensão possibilitada por seu excelente potencial comunicativo, bem servido pela tecnologia moderna, já implantada nas emissoras brasileiras.
A dinâmica financeira da televisão, ela também um negócio, obriga-a à programação que atenda ao grande público, razão por que sua maior parte tem mesmo de se ater ao que agrada à avidez lúdica do povo.
Mas nossa TV é concessão pública e, como tal, deveria contribuir, mais do que contribui, para melhorar o frágil padrão cultural brasileiro.
Não se trata de "controle social da mídia", com evidente sabor de censura autoritária e de resultado duvidoso quanto àquela contribuição.
Mas se poderia ao menos condicionar concessões e benefícios (a exuberante e pródiga propaganda do governo e de empresas estatais...) a um mínimo de empenho positivo.
Fundamentalmente, a autocontenção moderadora dos excessos de vulgaridade ou banalidade vazia e a apresentação, em horários acessíveis ao grande público, de programas que contribuam para a melhora do padrão cultural dos brasileiros.