À revelia dos eleitores 08/08/2013
- O Estado de S.Paulo
A designação oficial é "acordo de cooperação técnica". Mas, para chamar as coisas pelos nomes que desvelam a sua essência, a expressão adequada é promiscuidade entre Estado e mercado.
Ou, numa palavra, favorecimento. É nisso que consiste a peculiar decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), revelada ontem por este jornal, de repassar a uma empresa privada os dados cadastrais de 141 milhões de brasileiros.
A Justiça Eleitoral os tem em sua guarda apenas porque a lei exige de todos os brasileiros em condições de votar (e o voto no Brasil é obrigatório dos 18 aos 70 anos) que os forneçam no ato de alistamento eleitoral e em recadastramentos posteriores.
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Tão estranho é o negócio que a presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, que dele não sabia, quer a sua revogação.
A esses quesitos de identificação - nome, nome da mãe e data de nascimento - as repartições eleitorais acrescentam o número e a situação da inscrição eleitoral de cada cidadão e os seus eventuais óbitos.
São dados sob a proteção do sigilo, em nome do direito dos cidadãos à privacidade já compartilhada com a autoridade eleitoral. A proteção só poderia ser removida por decisão da Justiça ou com a concordância expressa do eleitor.
A empresa com a qual o TSE firmou o "acordo de cooperação técnica", publicado no Diário Oficial em 23 de julho último, é a Serasa S.A.
Ela vive de vender a terceiros informações sobre a ficha dos consumidores constante de seu banco de dados - em pedidos de empréstimos ou compras financiadas, entre outras transações.
A sua atividade é legítima. As informações compiladas, como as que constam dos cartórios de protesto de maus pagadores, são públicas. O que não se estende à apropriação da intimidade alheia.
Os dados transferidos pela Justiça Eleitoral - sem justificação plausível e duvidoso amparo legal - "fazem parte da personalidade" da pessoa, "protegida pela Constituição", assevera o criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira.
No acerto com a Serasa, autorizado pela corregedora-geral eleitoral Nancy Andrighi, consta com todas as letras que as informações repassadas "poderão ser disponibilizadas por esta aos seus clientes nas consultas aos seus bancos de dados".
A "validação" do nome da mãe do eleitor e de sua data de nascimento, fornecidos pela empresa, revela um zelo comercial. Destina-se a poupar os clientes do risco de comprar fichas de homônimos.
No documento assinado pelo diretor-geral do TSE, Anderson Vidal Corrêa e por dois executivos da Serasa, as partes se comprometem - paradoxalmente - "a guardar o necessário sigilo dos dados que se tornarem conhecidos em razão deste acordo".
Trata-se de uma contradição em termos.
"É no mínimo preocupante um dado confiado a uma entidade pública ser repassado para outra entidade que vai fazer uso diferente (dele) sem autorização das pessoas afetadas", adverte o professor Dennys Antonialli, coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da Faculdade de Direito da USP.
"Uma agravante é a possível monetização em cima desses dados", destaca. "O Código de Defesa do Consumidor tem regras muito estritas para a guarda de dados em bancos de entidades públicas."
Já o criminalista Pierpaolo Bottini chama a atenção para o fato de ser necessário um mandado judicial para a quebra de dados de eleitores, se forem considerados relevantes para uma investigação criminal.
Isso indica, a seu ver, que as informações não podem ser vendidas.
É estranho, para dizer o menos, o que a Justiça Eleitoral receberá em troca. Servidores ganharão uma certificação digital, ou assinatura eletrônica, fornecida pela Serasa, para uso em documentos oficiais na internet, com validade de 2 anos.
O recurso, alega o TSE, facilitará a tramitação de processos. Não é uma coisa do outro mundo nem a Serasa detém o monopólio da emissão de assinaturas eletrônicas. Órgãos públicos e empresas privadas geram esses arquivos de computador.
Uma pobre contrapartida para uma liberalidade que ignorou o direito elementar de 141 milhões de brasileiros à privacidade.