A pior face do petismo 26/09/2013
- Blog de Reinaldo Azevedo - Veja.com
O caso do Cade ilustra, com uma eloquência escandalosa, uma das misérias políticas brasileiras: o aparelhamento do estado, que foi convertido pelo PT em categoria política, numa forma de pensamento.
Sim, governar com aliados é parte do jogo democrático em todo o mundo. Ocorre que, em países que atingiram um estágio avançado de civilização democrática, órgãos de estado, especialmente aqueles voltados à investigação de irregularidades ou de atentados aos direitos básicos dos cidadãos, não estão submetidos a conveniências partidárias, ao toma-lá-dá-cá, a vieses ideológicos, à guerra política…
Ao contrário: esses órgãos são, na verdade, uma das fontes garantidoras do sistema. Por mais que os políticos se esfalfem em defesa desta ou daquela propostas, eles se encarregam de manter funcionando o aparato legal. Se e quando mudar, então aplicam a nova lei sem arroubos de criatividade.
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Nas democracias dignas desse nome, essa burocracia é conhecida por ser aborrecidamente legalista.
O Brasil é certamente um dos poucos países do mundo em que até ministro do Supremo chama o triunfo da lei de “legalismo”, com sentido pejorativo.
Por aqui, tudo funciona de ponta-cabeça.
O PT chegou ao poder em 2003 com uma base de apoio que presidente nenhum havia tido depois da redemocratização (Sarney, Collor, Itamar ou FHC).
Num dado momento, chegou a ter um apoio parlamentar superior ao de generais da ditadura.
De tal sorte plasmava a esperança de milhões de pessoas que houve uma espécie de suspensão do juízo: a Lula, tudo parecia ser permitido -- e amplos setores da imprensa também caíram na fábula encantatória.
Quando Antonio Palocci deixou claro que o partido havia jogado no lixo seu “programa econômico” (para felicidade geral), aí, então, Lula chegou ao topo da glória: o “homem do povo” havia se rendido à racionalidade.
Muito bem!
Houvesse um bom propósito no petismo -- eu sabia havia muito tempo que não, mas não era a regra --, Lula teria aproveitado a oportunidade para… nem digo “mudar o Brasil” (que isso não quer dizer nada).
Já sei: Lula teria aproveitado a oportunidade para começar a corrigir, de forma pausada e metódica, alguns desatinos que infelicitam a República e, pois, os brasileiros.
Mas quê! Ao contrário: ao atingir o topo, percebeu como o estado era poroso à politização mais rasteira e podia, na verdade, ser colonizado por seu partido.
Àquela altura, o PT já tinha experiência de aparelhamento até de festinha de aniversário.
Consolidou a ocupação desse estado, que já havia começado bem antes, quando ainda partido de oposição.
E o fez como?
Por intermédio dos ditos “movimentos sociais”.
Os petistas não acreditam -- e, de fato, desprezam esta concepção -- que a democracia se realiza plenamente com a autonomia dos indivíduos, garantida por uma burocracia estatal estável, presente em setores essenciais que assegurem a funcionalidade do sistema.
Ao contrário: o que não se realiza por intermédio do partido não vale.
Nesse sentido, segue sendo um esquerdista ortodoxo. Só não é mais socialista ao velho estilo porque socialismo ao velho estilo não há mais.
O de novo estilo subordina também o capital aos horizontes partidários, ainda que isso possa custar caro -- a Bolsa BNDES, por exemplo.
NOTA À MARGEM: o ódio à imprensa livre deriva do fato de que o partido, por enquanto ao menos, não tem sobre ela o controle que logrou ter dos demais setores.
Lula não pode entender que potentados da indústria e do capital financeiro o tenham na conta de guia genial e que o jornalismo, ao menos a parte relevante, não esteja a seus pés.
Sigo adiante.
Em vez da profissionalização do estado, o PT promoveu justamente o contrário.
Se, vá lá, o patrimonialismo se adonava do público, subordinando-o a seus interesses, o patrimonialismo aggiornado, falando a linguagem “das massas”, das “ruas”, fez de uma ocupação igualmente perversa a condição necessária para a realização de seu projeto.
Então onde está a diferença para pior no que concerne ao horizonte democrático?
A antiga forma de ocupação do estado era tida pela, bem…, “vanguarda do pensamento” como algo que devesse ser superado; agora, ao contrário, considera-se o aparelhamento um ponto de chegada e um valor de resistência.
É essa concepção de poder que faz com que um sujeito como o tal Vinicius Carvalho se torne o chefe do Cade, nada menos do que o órgão que, no Brasil, deve zelar pela livre concorrência, que é, sim, um valor das democracias.
Nota irônica à margem: é bom lembrar que foi o PT quem instituiu um sistema novo de construções de obras públicas para a Copa do Mundo que simplesmente jogou no lixo a Lei de Licitações.
Qual o mérito de Carvalho para estar onde está?
Nenhum em particular no que concerne à competência técnica, mas um em particular no que concerne à competência política: é do PT.
No cargo, a sua ação mais espalhafatosa, como se nota, tem um óbvio alcance político-partidário.
Aliás, foi Lula, o chefe máximo da legenda, quem afirmou, dada a avalanche de notícias sobre o suposto cartel, que Alexandre Padilha, candidato petista ao governo de São Paulo, havia “entrado no jogo”.
Quando se diz que o Cade atuou, nesse caso, como polícia política, não se trata de mero exagero retórico.
Esse é um procedimento-padrão das repúblicas bolivarianas, o que o Brasil ainda não é -- ou o é nos limites do que a institucionalidade que resiste permite.
Vejam o caso de senador boliviano Roger Pinto Molina, que está no Brasil -- depois de ter conseguido se proteger da atuação sórdida do Itamaraty nesse caso, graças à atuação decente do diplomata Eduardo Saboia.
Do que o acusa o governo Evo Morales?
De corrupção, claro! Afinal, em tese, na Bolívia, não é proibido se opor ao governo central.
Não agem de modo diferente os presidentes da Argentina, da Venezuela, do Equador ou da Nicarágua.
Não estou a dizer, reitero, que nada de errado se deu na relação entre Metrô-CPTM e a Siemens. Que tudo seja investigado!
Mas as evidências de que temos um órgão do estado a atuar para atender a interesses de um partido gritam de forma escandalosa.
Numa democracia mais civilizada, é evidente que o tal Carvalho não permaneceria cinco minutos no cargo depois da revelação do episódio.
Por aqui, não! O rapaz ainda tenta usar a revelação em seu favor.
Indagou por que ele teria escondido a coisa de caso pensado se, agora, a revelação lhe traz problemas.
A pergunta seria a de um estúpido não fosse a de um espertalhão: escondeu justamente porque a revelação lhe traria… problemas.
A questão é muito mais grave do que parece.
Pouco me importa se diz respeito ao PSDB, a A ou a Z. Diz respeito ao estado brasileiro.
Trata-se de saber se um órgão de estado pode exercer esse papel.
Não deixa de ser curioso que esse escândalo venha à luz no mesmo dia em que Dilma Rousseff deita aquela falação meio ridícula na ONU sobre espionagem (ainda volto ao tema).
Por aqui, em solo brasileiro, um órgão que tem a função de zelar pela qualidade da nossa democracia atua como polícia política.
Dê o exemplo, governanta! Bata na mesa, diga que isso é inaceitável, que a senhora não é Obama e demita o dito-cujo.
Mas ela vai fazê-lo, certo?
Afinal, mais Carvalho do que Dilma representa o poder petista.
Ela é ainda expressão de um “atraso”, que o partido sonha em superar um dia: eleição.
Ele não! Ele é um quadro que tem de estar onde está simplesmente porque é do partido.