Palavra de juiz 02/10/2013
- Dora Kramer - O Estado de S.Paulo
"Estamos pisando em espinho. Não sabemos a consequência que isso trará ao quadro político brasileiro e tenho certeza de que não será boa."
A frase foi dita, ou melhor, o vaticínio foi feito pelo ministro Joaquim Barbosa em meados do ano passado assim que o Supremo Tribunal Federal decidiu que o PSD, mesmo não tendo passado pelo crivo das urnas, teria direito a tempo de televisão e acesso aos recursos do Fundo Partidário para a eleição de 2012, na proporção da bancada dos 50 deputados que o então prefeito Gilberto Kassab conseguira atrair para a legenda criada em 2011.
Antecipando a piora do que já estava ruim, Barbosa votou contra, bem como a atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Cármen Lúcia. O TSE à época decidiu o mesmo que o Supremo e por unanimidade. Ambos os tribunais ignoraram solenemente duas leis: a eleitoral e a dos partidos que determinam com clareza meridiana que a distribuição de tempo e dinheiro deve obedecer à proporcionalidade das bancadas resultantes da eleição anterior.
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Em miúdos, na letra fria da lei, o PSD não teria direito aos benefícios porque havia sido criado entre as eleições de 2010 e 2012 e os deputados que conseguiu filiar haviam recebido votos em outros partidos. Mas o STF e o TSE resolveram entender diferente.
Os argumentos variaram desde a necessidade de se considerar "o dinamismo do processo político eleitoral" até a necessidade de se levar em conta a realidade. Qual seja a de que não se poderia impedir um partido já estabelecido como uma das principais forças do Congresso e em funcionamento em diversos Estados, de ter direito às condições proporcionadas aos outros.
Isso ao arrepio dos métodos adotados e da regra ainda em vigor, dado que as referidas leis (eleitoral e dos partidos) não foram revogadas. Mas, por que voltar ao assunto agora? Porque por analogia, a interpretação ultraliberal (no sentido da liberalidade) da legislação poderia - se é que não deveria - ser aplicada ao caso da criação do partido da ex-senadora Marina Silva.
Segundo o TSE, faltam 50 mil assinaturas e, pelas contas dos idealizadores da Rede Sustentabilidade, restam 30 mil para que seja alcançado o número exigido pela Justiça Eleitoral para a obtenção do registro. Marina Silva pede o beneficio da dúvida a respeito de 95 mil firmas rejeitadas pelos cartórios País afora sem justificativa.
Reivindica um "jeitinho"? Depende da interpretação. À primeira vista, sim. Porém, não deixa mesmo de ser esquisito que, enquanto a média do porcentual de rejeições no Brasil seja de 24%, no ABC paulista, reduto do PT cujo interesse que Marina concorra à Presidência é nenhum, esses índices cheguem a 78% (São Bernardo do Campo), 72% (Mauá) ou 69% (Santo André).
Em tese, caberia uma verificação; se é que há condições objetivas para tal. Mas a ligação com aquela decisão que favoreceu o partido de Gilberto Kassab é outra.
Partindo do princípio de que estejam corretíssimas as alegações sobre a necessidade de se observar o "dinamismo" do sistema eleitoral e de se levar em conta o dado de realidade, o que se passa com a Rede cabe perfeitamente nesse figurino.
Nada menos dinâmico que a metodologia de conferência de assinaturas, nada mais nebuloso que a recusa sem justificativa de um montante significativo delas e nada mais irrealista que ignorar a legitimidade de uma legenda com inequívoca representatividade social, como bem demonstrado pela votação obtida por Marina Silva em 2010 e os índices de intenções de votos nas pesquisas para 2014.
Se o peso e a medida dos fatos foram mais fortes que a lei para o partido de Kassab obter benefícios é de se perguntar por qual razão não se aplicaria o mesmo critério para assegurar aos eleitores de Marina o sagrado direito à escolha.