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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Exortação Apostólica do Papa não é carta de reforma coisa nenhuma
27/11/2013 - Blog de Reinaldo Azevedo - Veja.com

Veio a público a primeira Exortação Apostólica do papa Francisco. Chama-se “Evangelii Gaudium” (A Alegria do Evangelho).

Comecemos por corrigir uma distorção importante que circula por aí: NÃO É UM DOCUMENTO DE REFORMA DA IGREJA OU DO VATICANO. Como toda exortação dessa natureza, é um texto que trata de valores -- e que, sim, fala da necessidade de mudanças.

A Igreja é regida pela Constituição Apostólica “Pastor Bonus”, de 1988. Há uma comissão que cuida de sua reforma.


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Quando as propostas vierem a público, aí, sim, se cuida então de uma mudança.

Por enquanto, Francisco está a cuidar dos valores. A íntegra do documento, em português, está aqui.

Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, não é um teólogo, como Josef Ratzinger. Não é um intelectual.

Não tem a tendência de transformar as questões humanas num conceito para submetê-lo a uma ratio, de onde sairia, então, uma orientação de natureza moral e atemporal.

Imprime à sua fala um tom de urgência, de caráter, sim, reformista, para a Igreja de agora -- ainda que, como é de esperar, seus valores sejam os do catolicismo.

Além de não ser um teólogo, Bergoglio é um jesuíta, o primeiro a se tornar papa na história. E isso faz diferença.

A ordem nasceu com o propósito da evangelização, o que a levou, ao longo da história, a entrar em conflito, mais de uma vez, com a própria hierarquia católica.

Não por acaso, a autoridade máxima dos jesuítas é chamada de “o papa negro” (referência à batina), numa sugestão de que os jesuítas têm suas próprias prioridades, que nem sempre são as da Igreja oficial.

O mais notável jesuíta que atuou e pregou no Brasil, Padre Vieira, distinguia os “pregadores do paço” (dos palácios) dos pregadores do “passo” (os evangelizadores), que estão entre os homens. A própria Igreja era alvo constante de sua gloriosa fúria retórica.

Recado à Igreja

Nós parágrafos 81, 82 e 83, o papa aponta a “acédia” -- prefiro a grafia “acídia” -- que toma conta dos católicos.

É o enfraquecimento da vontade, a inação, a prostração.

Transcrevo trecho de seu texto e depois retomo Padre Vieira. Vocês verão que interessante.

“Esta acédia pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela (…) por terem perdido o contato real com o povo, numa despersonalização da pastoral que leva a prestar mais atenção à organização do que às pessoas (…) Assim se gera a maior ameaça, que ‘é o pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez’. Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de museu. Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem esperança, que se apodera do coração como ‘o mais precioso elixir do demónio’. (…) Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!”

Confesso que algumas imagens a que recorre Francisco não são exatamente do meu agrado, mas ele parece mesmo empenhado em fazer a Igreja falar uma língua mais crua.

No belíssimo “Sermão da Sexagésima”, Vieira indaga por que faz pouco fruto a palavra de Deus no mundo. Transcrevo trechos:

“Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando.”

Vieira examina, em seguida, cada um desses fatores para saber se o problema está com Deus, com a doutrina ou com os pregadores. E conclui:

“Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.”

E é justamente nesse Sermão que o padre distingue os pregadores do “paço” dos do “passo”, referindo-se explicitamente aos jesuítas, que enfrentavam a oposição de outras ordens religiosas e da alta hierarquia católica. Leiam o que ele diz:

“Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos”.

Visões de mundo

Não estou comparando discursos, obras etc. Estou tratando de uma visão de mundo: a jesuítica, segundo a qual a pregação do Evangelho, em meio ao povo, é o “sal da terra”.

Vieira e Bergoglio entendem que não há nada de errado com Deus ou com a doutrina. O problema está com os pregadores; o problema está com a Igreja.

Cumpre notar, em todo caso, que, da segunda metade do século 17 a esta data, a Igreja não acabou, não é?

A Igreja, na sua doutrina essencial, e antimaterialista e, vá lá, anticapitalista, mas não, obviamente, socialista.

Faço essa observação porque outra linha condutora da exortação de Francisco é, sim, a crítica ao capitalismo -- especialmente nos parágrafos 55 a 60. Leiam este trecho:

“56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.”

Mais uma vez, se quiserem, podemos voltar a Vieira e a alguns de seus escritos sobre a escravidão. Que tal isto?

“Os Israelitas atravessaram o mar Vermelho e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar Oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos (…). Os outros nascem para viver, estes para servir. Nas outras terras, do que aram os homens, e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela, o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos das próprias!
Já se, depois de chegados, olharmos para estes miseráveis e para os que se chamam seus senhores, o que se viu nos dois estados de Jó é o que aqui representa a fortuna, pondo juntas a felicidade e a miséria no mesmo teatro. Os senhores poucos, e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferro; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos de extrema miséria. Oh Deus! Quantas graças devemos à fé, que nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, vossa justiça e providência! Estes homens não foram resgatados com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”.

É um trecho do Sermão Vigésimo Sétimo, de 1688, um daqueles que o padre dirigiu à Comunidade Nossa Senhora do Rosário, composta de negros.

Por quê?

Faço essas observações para destacar que a proximidade da Igreja com os pobres, com os desvalidos, não é uma “modernidade” surgida com a Teologia da Libertação.

O que essa corrente fez, isto sim, foi emprestar à tradição humanista da Igreja o viés marxista, como se a luta de classes fosse o único caminho de combate à desigualdade.

Evidencio que o compromisso da instituição -- ou de fatias importantes dela — com o combate às injustiças é antigo.

Na verdade, está na origem do cristianismo. Ainda hoje, apesar de tudo, a Igreja Católica coordena a maior rede de assistência social do mundo.

Francisco não é, como, às vezes, se tenta vender aqui e ali, um papa contra a Igreja.

Parece é que o jesuíta pretende uma Igreja menos apegada ao “paço” e mais apegada “ao passo”; uma Igreja que busque menos as culpas dos fiéis relapsos do que dos pregadores relapsos.

Outras manifestações suas me desagradaram um tantinho. Esta não. Até porque valores que me parecem essenciais estão devida e inequivocamente explicitados.

Aborto

Certas declarações do papa sobre o aborto, por exemplo, andaram criando certa confusão. Esta exortação não deixa a menor dúvida sobre o posicionamento do Sumo Pontífice (e como poderia ser diferente?) sobre o tema. Transcrevo os parágrafos 213 e 214:

"213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predileção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem».

214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?”

Meio ambiente

Francisco é um papa de 2013, do século 21, e o meio ambiente assume também uma dimensão apostólica. Leiam:

"215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte que afectem a nossa vida e a das gerações futuras. Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos, formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insectos vivia no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas. (…) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques. (…) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num baldio. (…) Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (…) Como poderão os peixes nadar em esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»

216. Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos."

Encerro

O texto é imenso, e há muitos outros aspectos a destacar, mas fica para outros posts.

Que se marque: Bergoglio é um jesuíta, e Francisco é o chefe religioso de todos os católicos.

A condenação ao aborto vai aí explicitada. É inequívoca.

O que Francisco faz é não demonizar a mulher que, premida por esta ou por aquela circunstâncias, acabou optando pelo aborto.

O papa, no entanto, é muito direto: “Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou ‘modernizações’.

Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana.

A Igreja não mudará o seu ponto de vista sobre o aborto. Não com Francisco. Pode não demonizar a mulher que abortou porque abraça e perdoa o pecador, mas não condescende com o pecado.

Convém não confundir o papa da Igreja Católica com um “teólogo da libertação”. Ele não é. Graças a Deus!


  

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