Quem venceu o cabo de guerra? 22/12/2013
- Gaudêncio Torquato*
Imaginemos um cabo de guerra, puxado, de um lado, pelo Estado, com sua portentosa estrutura, e, de outro, pela população que habita seu espaço. Fixemos esse exercício de puxar a corda na paisagem brasileira para ver quem, ao fim de 2013, ganhou o jogo.
O Estado ou a sociedade? Ou será que a disputa está empatada?
A resposta não é fácil. Primeiro, pela dificuldade de enxergar os limites que separam os entes; segundo, pela visão antagônica dos representantes dos dois lados.
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Os governantes, lastreados em feitos -- obras, ações, projetos, leis --, certamente dirão que o Estado brasileiro, com suas funções políticas, sociais e econômicas, seus Poderes e divisões político-geográficas que compõem a Federação, apresenta notável desempenho.
Se a avaliação considerar as demandas do povo e a ocupação das ruas por multidões, a impressão é de que o ano de 2013 foi um dos mais retumbantes em matéria de participação social no processo político.
Sob esse ângulo, os habitantes acabaram puxando o cabo de guerra para seu lado, deixando o Estado para trás. Reforça-se tal impressão com a lamúria da esfera político-governativa, por estes dias, em torno da propalada e nunca realizada reforma política, chamada de "mãe das reformas".
Na seara reformista, é de convir que as sementes não ganharam, este ano, adubo suficiente para florescer.
O déficit previdenciário está em alta. Pagamentos de aposentadorias, pensões e auxílios têm crescido acima das expectativas.
Os gastos cresceram a um ritmo de 13,1%, em vez dos 10,3% projetados, o que dá uma grande conta quando aplicada sobre montantes que superam os R$ 300 bilhões anuais.
Se nada for feito, até 2030, os gastos previdenciários poderão crescer em mais R$ 300 bilhões, já que o número de benefícios mais do que dobrará no período.
Só este ano, o buraco ultrapassará os R$ 50 bilhões, o que corresponde a dois anos de Bolsa Família.
O rombo nas contas públicas atinge recorde, chegando a R$ 156 bilhões, o pior resultado da história, correspondendo a 3,33% de tudo o que o País produz (PIB).
Na frente tributária, mudanças ocorridas deverão elevar a carga no próximo ano. Prevê-se que o ano feche com uma carga de 36,42%, maior do que a de 2012.
A promessa de fazer a reforma tributária e enxugar os 61 tributos federais, estaduais e municipais continua uma quimera. No capítulo das contas, o Estado tem visivelmente perdido a disputa do cabo de guerra. Há, porém, destaques positivos.
O País tem avançado em certos nichos, como nas áreas da exploração da camada de pré-sal, caso do leilão de Libra, nos leilões de aeroportos, como o do Galeão, em que conseguiu um ágio de 294%.
Mas os "gargalos da logística" persistem e continuam a exigir alta prioridade nas malhas de rodovias, ferrovias e portos.
A conta é também negativa na planilha das obras do PAC, cujo cronograma está atrasado, como se pode constatar na transposição das águas do Rio São Francisco e na Ferrovia Transnordestina, que ligará o Porto de Pecém, no Ceará, ao Porto de Suape, em Pernambuco, correndo, ainda, pelo cerrado do Piauí, num total de 1.728 km.
Na quadra social, o Estado continuou a ampliar o colchão da assistência, estendendo o Bolsa Família para atender 13,7 milhões de famílias. Esse programa consumiu, ao longo dos últimos dez anos, R$ 120 bilhões.
Interessante observar que a estratégia de redistribuição de renda propiciou, na última década, a ascensão de 35 milhões de brasileiros à classe média -- hoje composta por 104 milhões de pessoas (53% da população), ao mesmo tempo que conferiu ao governo forte apoio na base da pirâmide, fundamental para o prolongamento do projeto petista de poder.
O contraponto tem sido oferecido pelos serviços básicos. Mais de 100 milhões de brasileiros não têm coleta de esgoto, enquanto a meta de universalização do saneamento básico carece de um orçamento estimado em R$ 302 bilhões.
A saúde é outra área deteriorada. A dificuldade de acesso e a ineficácia dos serviços de saúde são atestadas pela superlotação dos hospitais públicos, filas de atendimento, dificuldade de marcar consultas, equipamentos quebrados e ausência de médicos.
O programa Mais Médicos, que patrocinará a vinda de 12 mil médicos estrangeiros, em pleno curso, foi o paliativo adotado para atenuar a sangria no corpo da saúde pública. Desse veio -- é oportuno frisar -- poderão jorrar bons dividendos políticos.
Um olhar sobre as médias e grandes cidades flagra um clima de calamidade e tensão.
Ruas congestionadas, transportes coletivos saturados de passageiros, filas na hora do rush, insegurança e medo.
Sob esta teia, grupos de diferentes categorias profissionais foram às ruas manifestar indignação e protestar contra a ineficiência dos serviços públicos, a partir do precário sistema de mobilidade urbana.
Mais de 1 milhão de pessoas acorreram às ruas, no mês de junho, no evento de maior significação social do ano, a expressar, de um lado, a multiplicação de novos polos de poder na geografia social e a exibir, de outro, a elevação da cidadania.
Daí poder pinçar a hipótese de que a sociedade, de maneira altiva, avançou sobre as barreiras de um Estado que parece adormecido, paquidérmico, fechado em torno de si mesmo.
No campo político, emerge a impressão de que as Casas congressuais, açoitadas pelo chicote das ruas, saíram do rame-rame e adensaram suas pautas, com votação de projetos de impacto social -- como 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde; consideração da corrupção ativa e passiva como crime hediondo; diminuição do custo da cesta básica e da conta de luz; voto aberto para perda de mandato de parlamentar; etc.
O julgamento do mensalão garantiu à sociedade que "o país da impunidade" passou a admirar a deusa da Justiça e a bater palmas ao Judiciário. Mas é irresistível a sensação de que, entre todos os Poderes, o mais reverenciado, nesta reta final do ano, ainda é o poder da caneta.
Que manda e desmanda, faz e desfaz.
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*JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO