Golpe em privilégio 25/12/2013
- O Estado de S.Paulo
Se for confirmada a decisão liminar da Justiça, que restringe o poder da Prefeitura de alterar o tráfego em bairros da capital, para dificultar o acesso a eles e assim preservar sua tranquilidade, a pedido de grupos de moradores, este será mais um passo importante para conter a privatização do espaço público em benefício de alguns privilegiados.
Tanto esse isolamento de bairros como o fechamento de ruas, ambos com justificativas muito semelhantes, se multiplicaram ao longo do anos, criando uma situação inaceitável de desigualdade entre os cidadãos.
O Ministério Público Estadual (MPE) entrou na Justiça, em setembro, com ação contra a Prefeitura para interromper a execução do Programa Comunidade Protegida, também chamado de Moderação do Tráfego, criado em 2005. Com base em pedidos de moradores, encaminhados por associações de bairro, a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) traça rotas alternativas destinadas a preservar zonas residenciais. Essa medida não é tão inocente como parece à primeira vista. Infelizmente, ela só pode ser aplicada à custa do restante da população.
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Tanto isso é verdade que um inquérito civil concluiu que moradores de bairros nobres conseguiram desviar deles o fluxo de veículos, com prejuízo para quem atravessa essas áreas. Daí a conclusão da juíza Laís Helena Bresser Lang Amaral, da 2.ª Vara da Fazenda Pública: "A princípio, o programa, que não conta com lei específica, afronta os princípios da legalidade, interesse público, motivação e impessoalidade, previstos na Constituição Federal".
Por ocasião do ajuizamento da ação, a CET negou que o programa contemple apenas bairros ricos, porque nele já foram incluídos bairros carentes como City Boaçava, Jardim Marajoara e Vila Paulista. A esse respeito é preciso considerar dois aspectos. Em primeiro lugar, eles competem em condição de desigualdade com os ricos, como era de esperar, porque o programa prevê o financiamento pelos próprios moradores das obras exigidas por ele. E o que é pior: no caso de alguns bairros, como apurou o MPE, subprefeituras entraram com dinheiro, o que torna ainda mais injusto o não atendimento de áreas carentes, como foram os casos de São Mateus, Vila Carmosina e Cidade Tiradentes, apesar da solicitação dos moradores.
Em segundo lugar, e mais importante ainda, mesmo que os bairros pobres recebessem igual tratamento, isso não eliminaria a objeção essencial ao programa, que é o prejuízo acarretado à população das áreas vizinhas pelas restrições ao tráfego em seus limites. O mecanismo do privilégio funciona da mesma maneira num e noutro caso.
Não procede também o argumento de associações de moradores de bairros nobres de que o objetivo do programa não é impedir o acesso a eles, mas apenas obrigar os veículos a circular com menor velocidade, para assim aumentar a proteção à vida. Mesmo que a restrição ao tráfego se limitasse à redução da velocidade, ela continuaria inaceitável, porque isso prejudicaria a circulação em toda a área vizinha. É fácil de imaginar as consequências dessa lentidão forçada, num grande número de bairros, para o trânsito já caótico da cidade.
As associações de bairro - principalmente a dos mais ricos, que por isso têm de fato maior capacidade de influir na administração - resistem a aceitar a regra da convivência civilizada segundo a qual ninguém pode fugir, à custa dos outros, das agruras próprias da vida numa grande cidade como São Paulo, tais como a precariedade da segurança pública e a dificuldade de circulação. É perfeitamente compreensível que cada um queira escapar de uma e de outra. Mas não pode fazer isso avançando sobre os direitos dos outros, porque estão todos no mesmo barco.
E é exatamente o que vem acontecendo - e tem de mudar - nas restrições à circulação em bairros e no fechamento de ruas. No primeiro caso, a decisão judicial estabelece que isso só poderá ser feito depois de audiências públicas e com base em estudo sobre seu impacto na vizinhança. No segundo, o fechamento só pode ser autorizado, por lei, para veículos e em ruas sem saída.