Dias de cão no jardim das ilusões de Dilma 01/01/2014
- José Nêumanne*
Sempre que se fala em Glauber Rocha a tendência é relembrar obras-primas do cinema nacional que dirigiu, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, principalmente, e Terra em Transe, primoroso registro cinematográfico do subdesenvolvimento político nacional.
Embora o documentário Maranhão 66 já circule há muito tempo no YouTube, poucos telespectadores o destacarão para o panteão em que figuram os dois grandes filmes citados.
Afinal, trata-se de trabalho encomendado e pago e, portanto, suspeito de ser o registro hagiográfico de um político que sobreviveu ao cineasta e ainda atua com força e poder na gestão pública do seu Estado, onde seu clã reina até hoje, com raros interregnos insignificantes, e também na cena federal.
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No entanto, Maranhão 66 é uma obra que só melhora com o tempo, sem ter sido necessária uma única mudança ou intervenção de seu diretor, o que seria impossível tanto tempo após sua morte precoce.
Como é possível esse absurdo?
Procure o filme e veja. O que assistirá é ao discurso competente, bem alinhavado e de certa forma barroco do jovem deputado federal do grupo rebelde da chamada banda de música da UDN nos anos 60 José Sarney assumindo o governo do Maranhão.
As imagens acompanham, de início, o povo na praça ouvindo o eloquente tribuno e, depois, fazem um mergulho profundo num abismo de miséria e sordidez que confirma as palavras ditas na praça denunciando a barbárie vivida por aquela gente sob o jugo do padrinho e, depois, principal adversário do novo governador, o pessedista Vitorino Freire.
E, coerente com as ancestrais utopias políticas nordestinas, prometendo uma era de paz, bonança e prosperidade, similar às profecias de peregrinos como Antônio Conselheiro, protagonista do massacre de Canudos.
Hoje, quase meio século depois, a miséria é a mesma, o discurso é igual e o filme de Glauber, que parecia laudatório, torna-se uma denúncia política coerente e forte.
Já não se fazem documentários em p&b como antigamente e talentos como Glauber não existem mais. No entanto, o contraste brutal entre a retórica salvacionista e a horrenda realidade do subdesenvolvimento real manifesta-se de forma mais crua no cotidiano de informações e entretenimento da televisão colorida do dia a dia.
Ao começar o último fim de semana do ano passado, os telejornais diários exibiram de forma franca a atualidade ululante do documentário de Glauber no Maranhão de 1966.
Câmeras e microfones registraram o drama de uma jovem mãe com seu bebê nos braços em peregrinação pelos hospitais públicos de sua cidade para encontrar um pediatra para consultar.
Ela não estava no Vale do Jequitinhonha nem no sertão do Piauí, mas em plena capital da República e seus arredores.
A criança não foi examinada, mas o secretário da Saúde do governo distrital, sob comando petista, não teve pejo de registrar a ausência de pediatras em sua jurisdição e terminou com a promessa de hábito: em março serão contratados novos profissionais. A pobre mãe e seu bebê que os esperem.
Domingo, à noite, em horário nobre, com discurso dessemelhante ao de seu aliado Sarney pelo estilo, mas bastante similar pelo afastamento da realidade, a presidente Dilma Rousseff descreveu e deu números positivos sobre o que seu governo tem feito pela saúde de pobres mães e bebês como aqueles. Vieram médicos de Cuba e eles estão garantindo o atendimento nos ermos do sertão brasileiro.
Por falar em sertão, os telejornais também noticiaram a falta de água em Itapipoca, no interior do Ceará, porque uma adutora, que custou R$ 16 milhões ao contribuinte, se rompeu e a construtora que vencera a concorrência para construí-la faliu.
Ninguém responde pela obra inconclusa: os falidos sumiram e os que retomaram a obra nada têm a dizer.
O governador Cid Gomes -- que rompeu com o chefão de seu partido (PSB), Eduardo Campos, governador de Pernambuco, para ficar no palanque da presidente petista -- tentou resolver o problema mergulhando num tanque buscando fechar um registro e evitar que a água vazasse.
Enquanto isso, a população da cidade não tem água para lavar, cozinhar ou matar a sede de nenhum vivente.
Mas no Paraíso na Terra descrito por Dilma no domingo seguinte o País vive uma prosperidade não só inédita na própria História, como singular num planeta afundado em crise.
E o único risco é provocado pela canalha oposicionista que maldiz a própria terra criando empecilhos para investimentos e prejudicando, assim, o pobre povo brasileiro.
No discurso da presidente, de 15 minutos recheados de deselegantes gerúndios sem dês (estou fazeno, estou realizano, e por aí afora), os anjos dizem-lhe sempre amém, mas o diabo corre atrás para demolir sua fantástica obra de governo.
Só que no Maranhão governado por Roseana Sarney ainda resta um exemplo de que o endereço de nosso inferno é o mesmo do Éden de Dilma, embora o baiano Patinhas, que escreve seus discursos, não saiba.
Na Penitenciária de Pedrinhas, em São Luís, os chefões do crime organizado, que à ausência de autoridade mandam e desmandam, matam com métodos cruéis presos desassistidos pelo Estado cujas mulheres, irmãs e mães se neguem a lhes prestar favores sexuais.
O Conselho Nacional de Justiça já contou 60 cadáveres e a Organização dos Estados Americanos cobrou reação imediata dos governos do Estado e da União.
Ninguém apareceu para responder.
O ofício foi para o Ministério da Justiça, o causídico Cardozo negou ser assunto dele e o reencaminhou para a Secretaria dos Direitos Humanos, cuja titular, Maria do Rosário, mandou de volta para o destinatário original.
"Não é comigo" é o jeito gerentão com que Dilma modernizou o "não vi, não ouvi, não falei" do padim Lula de Caetés.
Infelizmente, contudo, ninguém encontrou nos longos e tediosos votos presidenciais de boas-festas uma só referência à segurança do bem-aventurado cidadão do Brasil sob a égide do PT e do PMDB.
A vida de seu súdito não é da conta dela, nunca foi, nunca será.