O Ovo da Serpente é o nome de um filme de Ingmar Bergman que mostra os conflitos e a desordem que antecederam a ascensão do nazismo.
Vivemos um momento complicado de violência, deboche, em que quase todos os conflitos degeneram em agressões, incêndios: a democracia não anda bem em nosso país.
Ainda assim, acho inadequada a expressão ovo da serpente. Não vejo na conjuntura internacional uma brecha para regimes autoritários com o nível de inserção econômica e política do Brasil.
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Mesmo porque a visão de Bergman do ovo da serpente pode não ser a única para descrever a situação brasileira. Há serpentes e serpentes.
Se fosse atribuir o ovo a algum réptil, diria que o processo de conflitos está gestando uma iguana -- uma situação esdrúxula em que todos podem sair perdendo, mesmo quem sonha em se aproveitar dela.
As mediações políticas acabaram. A democracia brasileira é um veículo sem o jogo de molas, que avança aos solavancos ameaçado pelo perigo de empacar. Carece de um lubrificante essencial: o diálogo.
Os idos de junho aprofundaram o abismo entre os partidos políticos e a sociedade. Apesar da retórica populista, os políticos mergulharam no seu mundo, perdidos nas transações fisiológicas.
Renan Calheiros chegou aos limites do seu corpo implantando cabelos em Pernambuco. Mas foi o mais perto da realidade exterior que conseguiu aproximar-se.
Os petistas decidiram questionar o Supremo de braços erguidos e o clima de desafio só tende a enfraquecer o edifício institucional.
Um cinegrafista da Band foi atingido por um desses foguetes de fogo de artifício. Atingido covardemente.
O artefato tem uma vara e funciona mais ou menos como um míssil terra-ar. Ao dispará-lo rente ao chão, transforma-se num míssil terra-terra. Santiago morreu.
Com instrumentos disponíveis no mercado é possível fazer uma guerra urbana. Mas quem fere um cameraman se arrisca a ser ferido pelas próprias câmeras, que revelam vários ângulos do atentado.
Como diria Garrincha, não combinaram com os russos. A televisão russa apresentou imagens que mostram claramente como aconteceu o incidente.
Inúmeras outras câmeras cobriram o episódio, oferecendo detalhes. As próprias câmeras do Exército, pois o episódio aconteceu perto do Comando, devem ter registrado dados importantes.
Nunca na história das manifestações, violentas ou não, houve tanta câmera em ação, se contarmos também com os celulares. É possível desvendar tudo.
Nesse sentido, é um passo democrático. Mas quase nunca se pune depois do fato desvendado. Isso é um atraso.
Não foi acidental a presença de uma equipe russa no centro do Rio. Nosso objetivo não era atrair a imprensa estrangeira para a gloriosa Copa do Mundo?
Uma vez aqui, não podem ignorar as manifestações nem, por exemplo, o apagão e as dificuldades energéticas que vivemos.
Claro, podem acreditar no discurso de Lobão, para quem vivemos no melhor dos mundos. Mesmo eles, com o tempo, acabarão percebendo que Lobão é apenas o Lobão.
As circunstâncias levam-nos a uma exposição em função da Copa, num momento confuso que dificilmente será equacionado pelas eleições. Estas podem agravá-lo.
Muitos de seus temas desembocam na luta ideológica do século passado. Com o caso da médica cubana que rompeu com o Mais Médicos.
O pensamento mais clássico de esquerda considera natural que alguém financiado retribua o investimento social feito nele.
É possível aceitar o programa Mais Médicos, mesmo admitindo sua limitação. É possível aceitar a vinda de médicos estrangeiros, cubanos entre eles.
É possível até admitir que Cuba não lucre só com a diplomacia médica, pois montou um esquema sanitário em lugares remotos do Haiti.
Mas é difícil aceitar que a relação de trabalho não se faça na base do consentimento recíproco. O contrato com os cubanos, mesmo com a intenção de atender o interior do País, importa mais um grande problema.
É proibido proibir que se denunciem contratos de trabalho e que as pessoas viajem para onde queiram. Quando o governo, ao tentar solucionar um problema, cria um novo e complicado enredo, é sinal de que não funciona como timoneiro, apenas indica que perdemos o rumo.
No setor de energia, o discurso não é só o de Lobão descrevendo o melhor dos mundos. É também o discurso da natureza incontrolável, constatação que Lula atribuiu a Freud.
Como caem os raios neste verão. Quando caem na cabeça das pessoas simples, elas são fulminadas.
Quando se esgotam no estrondo e no clarão, servem de pretexto para explicar as lacunas da nossa política energética.
O consumo cresce, a produção de energia, detida por uma série de obstáculos, não evolui como o planejado. E o verão ainda não acabou. Em vez de reconhecer a realidade, o governo se perde na defensiva.
Não vejo num ano eleitoral grandes mudanças na economia. Nem creio que Dilma, diante do princípio de caos, fará mais do que convocar reuniões que resultam, por sua vez, em comissões e grupos de trabalho.
O veículo democrático está condenado aos solavancos. Mas o filme de Bergman mostra algo importante. Acostumar-se com a violência cotidiana é perigoso, pois esses fatos tendem a desembocar em algo pior.
Um adolescente no Flamengo, no Rio, preso por um cadeado foi mais um episódio revelador do nível de intolerância que vivemos.
Justiça pelas próprias mãos, combates armados na rua, incêndios -- tudo isso vai sucedendo sem nenhum nexo com uma visão de mudança do País.
Os que sonham em apenas manter-se no poder se arriscam a perder, mesmo na vitória eleitoral.
Que País vai emergir desses confrontos cotidianos em 2014? Será governável apenas distribuindo cargos aos aliados?
A resposta é sempre esta: está tudo bem, vocês é que são pessimistas. Com sorriso profissional nos lábios, um marketing glorioso, cotoveladas e rasteiras na rede, la nave và.
Lobão dirá que há risco zero de apagão, punhos erguidos para interpretar o mensalão, para a violência uma nova comissão.
Quanta rima, meu Deus, e nenhuma solução, como diria o poeta.