Imprensa de esquerda? Imprensa de direita? 20/03/2014
- Eugênio Bucci*
O fato (histórico) de os jornais diários terem se firmado, ainda no século 19, como extensão de articulações partidárias que se enfrentavam na esfera pública tornou natural a classificação dos órgãos de imprensa segundo chaves próprias para a designação de correntes ideológicas.
O Estadão, por exemplo, nasceu em 1875 - com o nome de A Província de São Paulo -- com o objetivo declarado de promover as causas da abolição da escravatura e da República. Portanto, os adjetivos "abolicionista" e "republicano" davam conta de defini-lo, como se ele fosse um partido.
Com quase todos os jornais do século 19 foi assim: faziam proselitismo aberto, sem o menor embaraço (a reportagem era, naqueles primórdios, um acessório, um recurso a mais a serviço da propaganda das ideias).
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Por isso, exatamente como as agremiações partidárias, os diários se classificavam tranquilamente como republicanos ou monarquistas, nacionalistas ou internacionalistas, socialistas ou comunistas, conservadores ou liberais (os rótulos variavam -- e ainda variam -- conforme a cultura política de cada país).
Mais recentemente, costumava-se dizer que os órgãos de imprensa são "de direita", "de centro", "de esquerda". Com a maior naturalidade do mundo.
E hoje? Será que essa fórmula ainda funciona para entender a identidade e a vocação dos novos perfis dos órgãos de imprensa? Provavelmente não.
Não que as redações não tenham posições políticas. Elas as têm, mas isso é apenas parte do que representam e do que fazem.
Fora isso, o modelo de classificação "esquerda/direita" acabou se relativizando até mesmo para a atividade política.
A ordenação que se estende da esquerda para a direita na linha imaginária em que estariam dispostos os ideários disponíveis no debate público é, no mínimo, controversa.
No plano dos costumes, diz-se "de esquerda" quem defende, digamos, o casamento gay, enquanto os opositores dessa bandeira são vistos como gente "de direita".
Já no plano econômico, os adeptos do livre mercado (quanto mais sem Estado, melhor) são "de direita"; os entusiastas da estatização costumam ser carimbados como "de esquerda".
Num terceiro plano possível, aquele mais puramente político, os "de direita" gostam da gestão autoritária, autocrática; os "de esquerda" seriam mais "assembleístas", devotos de sufrágios, plebiscitos e instâncias participativas em geral.
Mas a vida é mais complicada do que isso. Lembremos que, no Brasil, a mesma ditadura militar que suprimiu eleições, censurou a imprensa e sufocou o Congresso Nacional (era de direitíssima, portanto) estatizou a economia numa escala considerável, em índices quase soviéticos.
Por outro lado, regimes ditos "de esquerda", como o de Cuba, perseguiram os homossexuais com disciplina bolchevique, impuseram o regime do partido único e estatizaram totalmente a atividade econômica (hoje há recuos, muitos).
Vemos, por aí, que a semântica mais convencional de "esquerda" e "direita" não ajuda muito a entender os propósitos dos agentes políticos.
Tentemos outra abordagem. A matriz de Norberto Bobbio, que pensa esquerda e direita em torno de dois eixos, liberdade e igualdade, talvez esclareça o cenário um pouco mais.
Bobbio diz que a esquerda gosta mais da igualdade, em função da qual se disporia a sacrificar a liberdade, e que a direita prefere a liberdade (de iniciativa econômica, principalmente), abrindo mão, se necessário, do princípio da igualdade.
Mesmo assim, a coisa continua problemática. Segundo a matriz de Bobbio, o sujeito de esquerda é aquele que aposta, vejamos, na liberdade de organização sindical e na defesa dos direitos dos trabalhadores. Para ele, a liberdade seria um atalho rumo à igualdade.
Acontece que esse mesmo sujeito fecha os olhos para o massacre da liberdade sindical que tem lugar nos regimes autodeclarados "de esquerda", que juram defender a igualdade.
Interessante: a mesma persona sindical que é festejada por plateias esquerdistas, no Brasil, é condenada como reacionária e pequeno-burguesa pelas mesmas plateias, em Havana.
Ora, se nem mesmo os agentes políticos podem ser bem explicados pela classificação "direita/esquerda" -- principalmente no Brasil, onde as principais forças políticas, como PT, PSDB e PSB, se declaram mais ou menos "de centro-esquerda" --, por que esse modelo de classificação deveria servir para definir a marca essencial de um veículo jornalístico?
Talvez o conjunto de convicções de uma empresa jornalística - que pode incluir a defesa de marcos regulatórios para o mercado de radiodifusão, do Estado laico e do mercado capitalista, por exemplo -- possa ser suscetível de uma classificação nesses moldes, mas o âmago de uma redação contemporânea, aquilo que a define, vai além disso.
Os editoriais de um jornal podem mostrar-se ultraliberais nos costumes (meio "de esquerda") e conservadores na economia ("de direita"), sem problema algum.
Isso não quer dizer que esse jornal esteja necessariamente a serviço de ONGs da causa gay ou de partidos direitistas.
A imprensa, como objeto teórico, ganhou autonomia e não cabe mais nos escaninhos da política.
Sem dúvida, o jornalismo cobre a política. É seu dever. Mais ainda, é uma atividade essencialmente política, pois lida o tempo todo com o poder e com os direitos da cidadania.
Mas um jornal não é (mais) a mesma coisa que um partido (quanto mais partidário, pior é) e sua qualidade não vem (mais) do fato de ele ser visto como "de direita" ou "de esquerda".
Vem, antes, da disposição que tem de refletir o pluralismo, da transparência com que expõe sua própria opinião, da sua independência e da capacidade que demonstra de investigar a fundo os assuntos que reporta.
Aí está o núcleo da identidade (e da qualidade) de um órgão de imprensa - e esse núcleo não é meramente "de esquerda" ou de "direita", ainda que muitos se tenham acomodado a essa visão reducionista.
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*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.