O surto de novas Faculdades de Medicina iniciado em 1996, quando havia 82, já ultrapassa 226, e com expectativa de se criarem mais de 40 escolas privadas, isso além do aumento das vagas em muitos cursos existentes em universidades federais.
Também escolas vêm sendo criadas por Estados e, principalmente, por municípios, sem audiência do Ministério da Educação.
Estamos atingindo dimensão absolutamente inaceitável, comparável somente à situação que existia há pouco mais de cem anos nos Estados Unidos da América (EUA), que deflagrou um processo conhecido como Relatório Flexner, o qual reformou o ensino médico, reduzindo drasticamente o número de cursos e dando caráter científico à formação.
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Essa reforma permitiu que atualmente os EUA, com cerca de 300 milhões de habitantes, tenha pouco mais de 140 Faculdades de Medicina, não por acaso entre as melhores do mundo.
Na década de 1970 visitei uma nova escola em San Diego, na Califórnia. Levaram-me a conhecer a biblioteca.
Tratava-se de um enorme prédio específico, onde, em suas estantes, se encontravam as coleções de todas as revistas científicas importantes, desde o número 1.
Revistas europeias que remontavam aos séculos 17 e 18, e não faltava nenhum número.
Perguntei como haviam conseguido e o professor que me acompanhava na visita respondeu apenas: "Money, doctor" (dinheiro, doutor).
Ou seja, quando se dispuseram a abrir um novo curso, cuidaram dos mínimos detalhes.
Por exemplo, o salão de Anatomia era amplo, com todas as peças dissecadas, e circundado por 40 pequenas salas com acesso direto ao salão, cada uma para dois alunos, que dispunham de todo o material para aprendizagem.
Muito longe das nossas escolas médicas improvisadas, sem nenhuma condição de oferecerem um curso -- minimamente -- razoável.
Medicina deve ensinar a lidar com a vida humana e não pode ser profissão que admita pessoal pouco qualificado.
No nosso país, entretanto, pretende-se oferecer à população profissionais com preparo muito limitado -- em prova não eliminatória, mais de 60% não são aprovados, numa avaliação relativamente simples, ao final do curso, feita pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
Sabe-se que se o primeiro atendimento não for adequado, a terapêutica pode ser equivocada, agravando muitas vezes a situação dos pacientes.
Não é por outra razão que nossas autoridades, quando acometidas por qualquer problema de saúde, buscam os profissionais mais qualificados e recebem o melhor tratamento que o avanço científico e tecnológico pode oferecer.
Não conheço ninguém da alta administração pública que procure, para se tratar, o ambulatório de uma escola sem a menor infraestrutura para funcionar e ensinar.
Médico ou é bem treinado e atualizado ou não deve existir.
Essa profissão não coexiste com gente mal treinada.
Isso, contudo, não deve ser debitado ao aluno, o qual responde a exigências, e sim à escola, que não está, ela própria, preparada para cumprir as demandas e oferecer um curso que atenda à necessidade de aprendizado do estudante.
Desde o corpo docente, que não pode ser improvisado, até instalações adequadas.
Existe enorme diferença, por exemplo, entre hospital assistencial e hospital de ensino.
E nós estamos utilizando hospitais assistenciais para promover o ensino.
Muitas entidades que não atuam nem têm tradição na área celebram convênios com hospitais assistenciais que não estão preparados para ensinar.
Já ouvi autoridade influente dizer: "Basta um médico assistencial ensinando o que sabe ao aluno".
Só que essa autoridade não se entrega aos cuidados desse médico, menos ainda ao aluno treinado por ele.
Mas o grosso da população não consegue escolher.
Medicina não se faz com quantidade, mas com qualidade.
Não é correto, por exemplo, aceitar quem obteve diploma de médico sem ter sido treinado em emergência, pelo fato de sua escola não dispor de pronto-socorro.
Agrava-se essa situação quando se agrega a esses fatos o crescimento e a urbanização acelerada da população.
Apenas para comparação, a França em 1890 tinha 33 milhões de habitantes, enquanto àquela época o Brasil tinha menos de 10 milhões.
Hoje a França tem 63 milhões, pouco menos que o dobro, enquanto nós atingimos 200 milhões, cerca de 20 vezes mais, quase 90% vivendo em cidades.
Esse grande salto ocorreu nos últimos 60 anos. Grandes massas de população fixaram-se, por algum motivo, em áreas onde os profissionais de que necessitam, entre eles o médico, não aceitam morar.
A Associação Brasileira de Educação Médica e muitos professores têm, há anos, se dedicado ao problema e proposto soluções que não são ouvidas por quem ocupa cargos de decisão.
Preferem soluções simplistas para um problema complexo, o que só vai agravá-lo.
Ora, se a política é a arte de tornar possível o necessário, a solução para oferecer atendimento de qualidade não pode ser simplista, nem orientada por quem coloca outros interesses que não o de formar médicos realmente competentes.
E, assim, criando hoje problemas difíceis de resolver para o futuro, acumulando grande número de escolas, formando mal, o que vai resultar numa geração despreparada, incapaz de solucionar o problema da assistência à saúde, pensando que a quantidade mal preparada possa vir a solucionar o problema em que estamos envolvidos, que é da maior seriedade.
Basta verificar que já temos o dobro do número de escolas médicas por milhão de habitantes em comparação com os principais países europeus.
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*CARDIOLOGISTA, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), DIRETOR-GERAL DO HOSPITAL DO CORAÇÃO (HCOR), FOI MINISTRO DA SAÚDE.