Culpa por decreto 01/04/2014
- Fábio Tofic Simantob*
Qualquer empresário atento às mudanças legislativas convive atualmente com dois fantasmas a rondarem a vida da empresa.
Um é a nova lei de lavagem de dinheiro (Lei n.º 12.683/12) e o outro, a Lei Anticorrupção, que entrou em vigor mais recentemente (Lei n.º 12.846/13).
A lavagem de dinheiro esconde-se amiúde em operações cotidianas aparentemente lícitas, de modo que detectar sua desfaçatez é tarefa complexa para o funcionário subalterno normalmente defrontado com esse tipo de situação.
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Aliada aos rigores da nova lei de lavagem, essa dificuldade tem levado empresas a criar regras internas, certas de evitarem, assim, o risco de cumplicidade de seus funcionários.
Ainda persiste, no entanto, a dúvida. Afinal, é justo condenar o empresário, ou um funcionário da empresa, não por ter desejado e premeditado o crime, mas apenas porque não foi capaz de impedi-lo, como é o caso da incriminação por lavagem no ambiente empresarial?
Existe um dispositivo no Código Penal, o artigo 13, que trata da questão, equiparando o autor do crime àquele que, embora tendo o dever legal de evitar o resultado, não procede dessa forma.
É a responsabilização por omissão. Esse dispositivo torna possível acusar por homicídio a mãe que deixa o filho morrer de inanição, ou o médico que deixa morrer o doente sem prestar socorro.
Dá para imaginar, entretanto, a perplexidade do empresário que se depara com uma lei que, apesar de acenar com sanções pesadas, não aponta caminhos claros de como evitar a prática da lavagem de dinheiro.
Sim, porque, em situações normais da vida, as chamadas posições de garante ou de responsável legal decorrem de regras claras.
A mãe não precisa conhecer a lei para saber que deve alimentar o filho, assim como o salva-vidas não precisa conhecer o Direito Penal para se incumbir do dever de auxiliar o afogado.
Mas uma empresa obrigada por lei a evitar que seus serviços sejam usados para camuflar dinheiro sujo encontra grandes dificuldades de natureza operacional para cumprir essa obrigação.
Afinal, o empresário briga contra si mesmo quando precisa ir atrás do lucro, sua atividade-fim, e ao mesmo tempo ser polícia do seu cliente, o que, além de não ser sua vocação, implica necessariamente perder negócios.
Somado a isso ainda há o fato de que, na área penal, em que ao Estado é dado o poder de aplicar as penas mais graves -- inclusive de natureza corporal, como a prisão --, as condutas proibidas precisam estar muito bem definidas.
E a razão para isso está na comprovação histórica de que, quanto mais imprecisa é a lei, maior a margem de arbitrariedade do Estado.
Como é possível, porém, responsabilizar, criminalmente, alguém por não fazer alguma coisa a que a lei o obriga, se, primeiro, esse alguém não está precisamente identificado na lei e, segundo, se o comportamento dele exigido não decorre de uma regra definida de forma estrita no ordenamento, mas de programas de governança, ou "compliance", que cada qual, a seu modo, deverá estabelecer na sua empresa, com grande dose de fé em que tais programas um dia sejam aprovados pelas autoridades competentes?
Uma loteria ou, quem sabe, mais uma roleta, porque é enorme o risco de apostar no que acha correto e, no entanto, acabar perdendo tudo.
Por falar em perder tudo, esse é o risco real de quem estiver incurso na nova Lei Anticorrupção.
Adotando lógica até mais perversa, embora não haja sanção de natureza criminal, a nova lei prevê penalidades severas para a empresa que não evitar a prática de corrupção no âmbito de suas atividades, podendo até ser extinta, dependendo do caso, com prejuízo para muita gente inocente, conspurcando, é forçoso lembrar, a garantia constitucional de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.
O que o legislador claramente visou com a promulgação dessa nova lei não foi punir o empresário que individualmente pratica a corrupção, mas, sim, a empresa como um todo, caso o funcionário, não importa de que escalão, seja descoberto corrompendo um agente público.
Eis aí o grande erro do legislador.
Se a empresa tem dificuldades para ser a polícia de seus clientes, tal como o Estado a quer no combate à lavagem, pior ainda a tarefa de xerife de seus funcionários.
A responsabilidade pelo cometimento de um crime deve ser sempre individual e cabe ao Estado investigar o fato para poder punir os responsáveis, até o mais alto escalão, se necessário, inclusive com medidas de afastamento dos culpados da direção da empresa e mesmo com sanções à própria empresa, dependendo de como o ato de corrupção estiver atrelado à sua forma de condução dos negócios.
O que o Estado não pode é abreviar essa missão investigativa mediante a responsabilização de todo um regimento por mero decreto, sem critério algum, apenas porque a empresa não foi capaz de estabelecer programas de prevenção das práticas ilícitas.
Ora, as pessoas mal conseguem prevenir acidentes, o que dirá crimes intencionais de terceiros, como a corrupção.
O legislador finge ignorar, ademais, que o grande vilão da corrupção não está dentro da empresa, mas no agente estatal que muitas vezes cria dificuldade para vender facilidade ou, o que é mais comum, vai direto para o achaque puro e despudorado.
Mas desse velho personagem da história nacional a nova lei não cuidou.
Leis como essas, com indisfarçável viés totalitário, além de criarem um forte clima de desconfiança dentro das empresas, permitem uma alta dose de subjetivismo e arbítrio do agente estatal incumbido de aplicá-las, prova maior da incompreensão do legislador acerca do mal que se propôs a debelar.
Dominasse o tema, saberia que o arbítrio estatal é, na verdade, um dos grandes responsáveis pela corrupção que assola o País.