O samba-da-presidenta-doida 04/04/2014
- Reinaldo Azevedo - Folha de S.Paulo
Existe a revisão virtuosa da história. À medida que se descobrem novos documentos, que se apela a saberes não convencionais para as ciências humanas, que se estudam fontes de narrativas antes consideradas fidedignas, o passado pode ganhar novo contorno em benefício da precisão.
É o oposto do que está em curso nestes dias, nos 50 anos do golpe militar de 1964. A memória histórica foi abolida em benefício da memória criativa e judiciosa.
Dilma se tornou a personagem-símbolo desse saber que se erige como nova moral.
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Na solenidade de privatização do aeroporto do Galeão, resolveu apelar a Tom Jobim e citou o "Samba do Avião".
Segundo disse, a música ligava o Brasil de hoje ao do passado ao "descrever" a chegada ao país dos brasileiros que voltavam do exílio, depois da anistia, "após 21 anos".
É o samba-da-presidenta-doida.
A música é de 1962, o golpe foi desferido em 1964, e a Lei da Anistia é de 1979, quando os exilados, então, começaram a voltar -- 15 anos, portanto, depois do golpe, não 21.
A canção faz uma evocação lírica do Rio; nada a ver com protesto.
Ao contrário até: o narrador revela aquele doce descompromisso bossa-novista: "Este samba é só porque/ Rio, eu gosto de você"...
Não havia nada de programático a ser interpretado: "A morena vai sambar" queria dizer que a morena iria sambar.
Sugiro um estudo aos teóricos do Complexo Pucusp: o mal que o golpe fez à cultura metafórica brasileira.
Na semana passada, lembrei que, em 1987, em vez de reciclar os ódios ao Estado Novo, inaugurado em 1937, o Brasil cuidava do futuro e vivia o processo constituinte, aprovado pela Emenda nº 26, de 1985, que tinha a anistia de 1979 como pressuposto.
"Anistia" que, por fatalidade da língua, tem a mesma raiz de "amnésia" e significa, para todos os efeitos da política e do direito, "esquecimento".
Por óbvio, isso não impede que se procure a verdade, coisa que não cabe a um ente do Estado. Por natureza, ele irá justificar a ordem de compromissos que o instituiu.
Assim, uma comissão oficial da verdade, lamento!, é mentirosa "ab ovo".
Nem o governo negro da África do Sul se negou a apurar atos protagonizados por adversários do apartheid.
A do Brasil, contrariando a lei que a instituiu, já deixou claro que sua vocação é demonstrar que o Lobo Mau era mau e que os Chapeuzinhos Vermelhos eram bons.
Num pequeno discurso, Dilma reconheceu, oblíqua e envergonhadamente, a Lei da Anistia e, de novo, elogiou os que tombaram.
Na sua lista não estão as 120 pessoas (no mínimo) assassinadas por grupos terroristas, inclusive os de que ela fez parte.
Ai de quem se atrever a lembrar, no entanto, os crimes sinistros de poetas da morte como Lamarca e Marighella!
Passa a ser tratado por alguns cronistas -- que têm de opinião arrogante o que exibem de orgulhosa ignorância -– como sócio e partícipe da tortura.
Transformam supostos adversários em caricaturas para que fique fácil vencê-los -– no boteco ao menos.
Fazem com a história o que Dilma fez com o "Samba do Avião".
Como responder?
Jogando no seu colo o corpo despedaçado de Mário Kozel Filho ou o crânio esmagado de Alberto Mendes Júnior?
Nem sabem do que falo. Não dá para entrar nesse jogo rasteiro.
Não pretendo voltar ao golpe neste espaço –- a menos que ache necessário.
O que hoje desperta o meu interesse é essa esquerda que se ancora numa falsa gesta do passado para assaltar o futuro, como evidenciam as lambanças na Petrobras e o esforço suarento do petista André Vargas para explicar o lobby no Ministério da Saúde em favor de um doleiro --assunto que vai se tornar ainda mais rechonchudo.
O que me mobiliza é fazer a sociologia dessa "burguesia do capital alheio", ainda a minha melhor expressão para definir essa gente.
Na quarta, um desenhinho animado da presidente, em sua página oficial no Facebook, dava "um beijinho no ombro" para "us inimigo".
Uma "Dilma Popozuda" é evidência de arrogância e descolamento da realidade, não de graça.