A pátria que nos pariu 15/04/2014
- Arnaldo Jabor*
"Em poucos dias, farei 514 anos, eu, a mãe-pátria amada de mil faces. A pátria que vos pariu.
Estou em toda a parte e em lugar nenhum. Sempre quiseram dar-me uma identidade, mas eu não tenho um rosto só. Na verdade, sou uma região dentro de vossas cabeças.
No início, eu era a bandeira catequista para encobrir a missão predatória que faziam no País real. Eu era usada para abençoar índios de camisola e navios negreiros.
PUBLICIDADE
Depois, eu fui a mãe escravista e mercantil do império, defendendo o atraso para o bem dos donos do poder. Na República, virei a auriverde mãe positivista, entre flores e raios apontando para um eterno futuro.
Nos anos 30 e 40, virei uma mistura de madona 'art déco' com alegoria populista. Falavam de mim nos hinos, nas capas de cadernos escolares, nas fachadas de hospitais, eu era a virgem mãe nacionalista defendida contra inimigos estrangeiros, mas, na verdade, eu servia para proteger meu pior inimigo: o patrimonialismo enquistado nas dobras do Estado.
O pós-guerra mudou o mundo, mas eu continuei a ser uma grande aquarela brasileira em que cabiam todas as ilusões. Eu era abençoada por Deus e tinha a nitidez dos quadros acadêmicos, eu justificava os crimes dos poderosos com meu firmamento estrelado, minas de ouro, leitos de petróleo, sempre com a promessa de 'futuro'.
Com Brasília, acharam-me "fora de moda" com minha alma agropastoril.
Eu não seria mais Cy, a mãe-do-mato, cercada de curupiras, boitatás, sacis. Virei um canteiro de obras, esqueletos de edifícios -- eu era a arquiteta da utopia.
Deixei de ser índia. Cobriram minha nudez de Iracema com meias de nylon, grandes luvas negras, "escarpins" dos anos 60.
Nasci para o mundo com a "missão" juscelinista que acabaria com a miséria pelo parto da modernidade. Mais uma vez, eu era o emblema de uma nova ilusão dos brasileiros.
Transformaram-me em aeroporto para o amanhã mágico, um viaduto imaginário por cima da desgraça do povo.
Mas, o subdesenvolvimento persistia, mesmo sob a asa branca da capital utópica, e eu fui transformada numa nova alegoria.
Em 1963, era preciso que eu fosse a mãe das reformas de base e que levasse nas mãos a espiga de milho, a foice dos camponeses e a roda dentada da indústria.
Eu iria parir um tipo novo de socialismo sem sangue, um "socialismo tropical" que viria por decreto do presidente Jango.
Eu seria uma mãe-coragem sem guerra que realizaria todos os desejos. E entre as tochas dos comícios delirantes, levadas por jovens que se achavam o "sal da terra", eu aboliria a luta de classes e seria a mãe da "revolução cordial".
Mas meus filhos revolucionários não contavam com a infinita mesquinhez dos poderosos, escondida sob a aparência de cordialidade, pois os donos do poder não queriam me ver sujando as mãos nas favelas e no campo.
Assim, na ditadura militar, eu fui tirada do pedestal popular e uma nova mãe-pátria foi criada, no altar positivista dos tenentistas tardios.
Abriram-me novos céus estrelados, fizeram-me de novo a índia de camisola verde-oliva, a triste mãe dos quartéis, a feroz guerreira parnasiana dos discursos militares.
Durante esses anos, meus filhos tiveram medo de mim, mãe castradora, seca, cruel.
E então eu virei a deusa trágica dos heroicos guerrilheiros urbanos, a mãe-trapezista dos abismos, a estrela dos suicidas.
Os torturadores giravam máquinas elétricas e, entre gritos, pensavam estar me defendendo, a mim, uma vaga mistura de seios ensanguentados e rostos de meninos-cadáveres. Eu fui a mãe dos assassinos.
Enquanto isso, eu tinha saudades dos meus filhos do Brasil real, feito de madeira podre, caixote, barbante, lama e favela. Eu estava com eles, mas ninguém me via.
No fim da ditadura, eu renasci como a mãe democrática, o futuro de uma vida nova que viria.
Mas chegou a liberdade e eu não cheguei. A liberdade veio torta, marcada pela morte de Tancredo.
Os planos econômicos fracassavam e não chegava a felicidade que eu traria.
E meus filhos começaram a me maldizer, ao ver que a democracia era de boca, que as instituições eram dominadas pela oligarquia e que o País era pilhado até por "ex-vítimas da ditadura".
Fui a mãe do desencanto. Fui a mãe odiada.
Hoje, sou a mãe dos desorientados. Sou a mãe de velhos militantes regressistas, comandando massas imaginárias, sou a mãe-suja dos corruptos, sou a mãe terrível que abandonou os filhos no corredor do hospital sem leitos, sou a mãe aborteira, sou a mãe criminosa dos massacres, sou a mãe dos mortos nas prisões, sou a mãe das secas, a mãe da poluição, sou a mãe da fome, a mãe paralítica dos burocratas, sou a mãe dos pixotes assassinados, a mãe das putinhas dos garimpos, a mãe dos esgotos, mãe do medo.
Nunca sentira isso antes.
Sinto-me uma mãe fragmentada, desmantelada por um velho desejo de desfigurar as instituições em que me apoio.
Os homens que mandam no País não me querem, dizendo que me amam ou que amam o povo que não amam.
Nunca, em minha vida de 500 anos, vi este desejo cego de me ignorar (me louvando), num misto de estupidez com hipocrisia.
Mas, vejo que meu corpo é maior, que eu sou muito complexa para ser destruída, que as partes fundamentais da verdade vão prevalecer e me manter viva.
E em meio aos escândalos, aos roubos, à destruição (agora sim) do patrimônio nacional, vai aparecer meu novo rosto.
Meu manto de estrelas será tecido de trapos e deixarei de ser uma deusa longínqua, uma ilusão, e aos poucos os brasileiros aprenderão a me chamar de "realidade".
Mas, eu me prefiro assim, pois ressurgirei da morte das mentiras, hinos e discursos corruptos que enganaram meus filhos.
E quando os sonhos falsos forem esquecidos, sob um céu de anil, entre rios e florestas, poderei fazer alguma coisa por vocês, filhos queridos."