Terrorismo 22/04/2014
- João Pereira Coutinho - Folha de S.Paulo
O mundo está com os olhos postos no Brasil: há Copa daqui a dois meses. Mas chegou à imprensa europeia um desagradável pormenor dessa Copa: o projeto de lei 499 que pretende punir atos de terrorismo em solo brasileiro.
Ponto prévio: nenhum Estado de Direito pode ignorar ameaças terroristas. Se o Brasil não tem legislação específica contra o crime, sobretudo quando tem a Copa em 2014 e as Olimpíadas em 2016, seria aconselhável que os congressistas pensassem rapidamente no assunto.
O problema é que a "lei antiterror", tal como está redigida, enforma dois problemas: não entende o que significa terrorismo e, pior, abre a porta para formas informais de "lei marcial" sempre que alguém, algures, protesta com estridência (ou até violência) contra o governo.
PUBLICIDADE
Sobre a noção de terrorismo, entendo que o conceito não seja pacífico. Mas o filósofo Michael Walzer, que tem dedicado uma parte substancial da sua obra ao tema, deixou ficar uma definição possível: terrorismo não é sabotagem, vandalismo ou ocupação indevida do espaço público. Tudo isso é crime, sem dúvida, mas a legislação ordinária já lida com o assunto -- e o Brasil não será exceção.
"Terrorismo" habita uma categoria à parte: significa o uso de violência letal e indiscriminada contra pessoas inocentes.
Quebrar vitrines ou ocupar estradas é uma coisa. Usar bombas em cinemas ou restaurantes, de forma a assassinar o maior número possível de brasileiros ou estrangeiros, é outra. Se o Brasil pedir informações ao governo israelense sobre a matéria, entenderá a diferença.
Claro que, para piorar as coisas, até podemos perguntar se o terrorismo pode ser lícito em certos contextos políticos. Michael Walzer condena-o sem reservas por entender que o terrorismo, na matança indiscriminada de inocentes, nem sequer estabelece uma distinção mínima entre alvos legítimos (ditadores, por exemplo) e ilegítimos (populações que vivem sob ditadura).
Mas existem outros filósofos -- como o sempre perturbante Lionel Mcpherson -— que não hesita em virar o debate: o terrorismo pode ser preferível a uma guerra convencional. Morrem menos civis em atentados terroristas do que em guerras convencionais, diz ele.
E, além disso, podem existir situações —- o apartheid na África do Sul, cita o autor -— que tornam o terrorismo necessário.
Mas a "lei antiterror" brasileira não é apenas imprecisa na definição de terrorismo. Se ela for aplicada, o governo terá amplos poderes para suprimir liberdades civis básicas.
Quando se lê que a lei procura evitar ofensas "à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade" de alguém, isso significa tudo e nada. Significa, no limite, que o governo interpreta, de acordo com a sua conveniência, se uma manifestação contra a presidente Dilma constitui uma "ofensa" contra a "liberdade" de quem deseja aplaudi-la.
A boa notícia é que, segundo o jornal "The Guardian", que me despertou para o problema, cresce a contestação à "lei antiterror". Essa aberração é condenada por defensores dos direitos humanos, obviamente; mas também por muitos congressistas, que já vislumbram o buraco que a lei pode abrir na democracia do país.
E pouco me importa que muitos desses congressistas estejam mais preocupados em proteger as ações dos sem-terra e de outros grupos esquerdistas do que o Estado de Direito propriamente dito. O que importa é repudir essa lei.
Porque existem coisas piores do que não vencer a Copa. É o Brasil ter como herança da festa um dos instrumentos típicos da repressão totalitária.