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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

João XXIII, lado B
26/04/2014 - Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo

Era um tipo familiar. Baixinho, roliço, bochechudo, nariz afirmativo. Vá lá, achava-se o pai da humanidade, tanto que a todos chamava de "figlioli".

Comecei a perceber sua presença aos 9 anos. De alguma forma ele mudava a minha vida.

No colégio religioso, um belo dia o capelão rezou a missa voltado para as crianças, lidando abertamente com os cálices, que eu imaginava serem parte de algum truque de mágica.


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O padre não reza mais de frente para o altar?

De agora em diante, disse a freirinha, ele rezará de frente para os fiéis. Versus populum. Sim, senhora.

Minha mãe também indagou na paróquia por que não deveria vestir a filha com um modelito de Primeira Comunhão cheio de rendas e babados.

Porque agora todas as crianças vão vestir a mesma túnica, respondeu a catequista.

Sinônimo de mudanças, aquele "agora" tinha tudo a ver com o senhor gorducho do primeiro parágrafo, figura afável, bem-humorada, quase um vovô de mostruário: Angelo Giuseppe Roncalli, o papa João XXIII.

Na casa onde o dogmatismo religioso sempre perdeu para o catolicismo de face humana, aprendi que o papa da minha infância vinha fazendo um trabalho importante para o mundo.

Lembro do ar consternado de meus pais quando João XXIII morreu, em junho de 1963, consumido por um câncer.

Já era chamado de "Papa Bom".

Amanhã, o papa da minha infância vira santo em cerimônia no Vaticano.

Santo como João Paulo II, papa da vida adulta, que cheguei a ver de perto em cobertura, com seu carisma impressionante.

Mas, pergunto: quantos se lembrarão do carisma tão particular de João XXIII, morto quando o planeta tinha 3,2 bilhões de habitantes, quatro bilhões menos do que a população mundial hoje?

Pois aquele italiano nascido numa família famélica em Bergamo, e que ao longo da vida cultivou barriga proeminente demais para os bracinhos curtos, marcou a humanidade.

Que o status de santo que lhe conferem agora não o livre de ser mais estudado.

João XXIII passou para a história como o pontífice que ousou convocar um concílio num mundo traumatizado por duas guerras mundiais e pela bomba atômica, tragédias vividas no breve espaço de meio século.

Era um papa disposto a promover o aggiornamento da Igreja católica, e não estabelecer novos dogmas e heresias, como aconteceu em concílios anteriores.

Queria abrir as janelas dessa instituição milenar sempre mais propensa ao conservacionismo do que à evolução.

Não seria pequena a tarefa que impôs para si, ainda que por mandato divino.

O curioso é que, embora já se falasse em concílio na época do antecessor Pio XII, foi com João XXIII que a coisa andou.

Isso, sendo ele eleito no décimo primeiro escrutínio do conclave, por falta de consenso entre os cardeais, escolhido já velho para atuar como um pontífice de transição -- no entanto, se durou pouco no cargo (cinco anos incompletos), abalou profundamente as estruturas.

Justo ele, que não contava ser papa.

Já estava feliz por ter chegado a patriarca de Veneza.

Tal como Francisco, o estilo de João XXIII também surpreendeu na época.

Na fala de abertura do Concílio, ele já chegou dizendo que a Igreja precisava "usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade".

E deu as diretrizes do encontro, diante de 2 mil prelados e teólogos de todas as partes.

No final do primeiro dia de trabalho, apareceu no balcão para saudar a massa de fiéis na Praça São Pedro.

Fez o famoso Discurso da Lua, "hoje até ela tem pressa... olhem para o alto, observem-na, está guardando o nosso espetáculo".

E se despediu com um paternal "adeus, filhinhos, voltem para casa, boa noite".

Tinha rompantes curiosos.

Dizia que, para desviar do pecado, evitava até ficar a sós com mulheres bonitas.

E diariamente rezava pelos bebês nascidos nas últimas 24 horas, para que nenhum ficasse sem a bênção do papa.

Não dá para entender João XXIII sem levar em conta o núncio Roncalli, sua identidade anterior.

Amigo do papa Pio XI, ele se tornou autoridade apostólica na Bulgária em 1925, convivendo com católicos de rito latino e bizantino.

Era o começo de uma carreira diplomática intensa, porém pouco conhecida.

Na década seguinte, foi transferido para a Turquia, com autonomia para atuar na Grécia, promovendo o diálogo entre católicos e muçulmanos.

Mas é no decorrer da Segunda Guerra que ele empreende as tarefas mais audaciosas, já tendo se estranhado com Mussolini em seu país.

Decidiu arregaçar as mangas da batina para salvar judeus dos campos de concentração e das câmaras de gás.

Consta que ele, núncio em Istambul, um dia perguntou ao refugiado e ativista americano Ira Hirschmann:

"O senhor acha que os judeus aceitariam voluntariamente ser batizados?".

O interlocutor respondeu que sim, desde que isso os salvasse da morte.

E Roncalli arrematou: "Então sei o que fazer".

Deu partida na "Operação Batismo", que consistia em expedir certificados eclesiásticos, tendo ou não os judeus recebido o sacramento.

Não cogitou convertê-los à força, mas, diante da ameaça de extermínio, sentiu-se obrigado a defender suas vidas.

Andou no fio da navalha do direito canônico.

Diversos autores, o argentino Marcos Aguinis entre eles, escreveram sobre o "batismo de conveniência" inventado por Roncalli, que pode ter salvo entre 24 mil e 80 mil judeus.

Mas quem melhor captou a sua coragem moral talvez tenha sido a filósofa Hannah Arendt.

Minuciosa, ela se debruçou sobre os diários de João XXIII.

Leu páginas e páginas repletas de exames de consciência, autoexortações, relatos de progresso espiritual, enfim, testemunhos de uma religiosidade aparentemente rasa.

Hannah tentava entender por que a leitura era ao mesmo tempo decepcionante e fascinante.

Teve um estalo diante de uma sumária confissão: "Eis o meu modelo: Jesus Cristo".

Daí captou o homem que levaria até o fim seus compromissos.

Ainda que o chamassem de louco.

Numa passagem dos diários, o Papa Bom escreve:

"Acreditam que sou tolo. Talvez seja, mas meu amor-próprio não me permitiria pensar assim. É o engraçado de tudo isso".


  

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