Privilégio inaceitável 11/05/2014
- O Estado de S.Paulo
Tramita no Congresso mais uma tentativa de privilegiar os clubes de futebol a título de fazê-los pagar suas dívidas com o Estado, obrigação de qualquer firma regularmente estabelecida.
Ainda que venha sendo chamada de "lei de responsabilidade fiscal no esporte", para caracterizar a suposta rigidez com que serão tratadas as agremiações que aderirem ao plano de refinanciamento, o fato é que, de novo, os clubes serão tratados como entidades excepcionais, merecedoras de benefícios raros ou inexistentes para o resto da sociedade.
Com folhas de pagamento de fazer inveja a grandes multinacionais e envolvidos em negócios milionários, os clubes são olímpicos em relação a suas dívidas com o Estado, como se elas não existissem.
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Habituados a empurrar os problemas fiscais com a barriga e contar com a boa vontade demagógica de parlamentares que temem -- ou exploram -- o apelo popular do futebol, os dirigentes dessas agremiações sabem que sempre serão poupados das exigências feitas aos demais empresários, como ter de pagar tributos em dia e manter os livros-caixa em ordem.
As dívidas dos clubes com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o Imposto de Renda, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o Banco Central, entre outros entes públicos, somam cerca de R$ 4 bilhões.
Fossem empresas como outras, essas entidades já teriam sofrido as graves consequências previstas em lei.
No entanto, como o futebol é tratado no Brasil como se fosse um universo paralelo, com leis próprias, os inadimplentes recebem tratamento bem diverso.
Em lugar de puni-los, confiscando seus bens e eventualmente encarcerando seus dirigentes irresponsáveis, o Estado os premia com incentivos para que paguem o que devem, em geral com desconto e juros camaradas.
À Rádio Câmara, o deputado Otávio Leite (PSDB-RJ), relator do projeto para aliviar os clubes, que acaba de passar por uma comissão especial da Câmara, argumentou que é urgente aprovar o refinanciamento.
"Vamos deixar a Fazenda nacional executar (a dívida)? Vai lá no Vitória (clube da Bahia) e fecha seu estádio? Fecha a Gávea, do Flamengo?", perguntou.
Tal questão não teria cabimento num país em que todos fossem iguais perante a lei.
Mas, como disse o deputado, o futebol "é um tema que está na nossa alma" -- logo, o contribuinte será punido por viver no "país do futebol", tendo de arcar com as benesses dadas a clubes perdulários.
O deputado Leite garante que não se trata de nenhuma anistia, mas os benefícios são evidentes.
De acordo com a proposta, as dívidas serão unificadas, com prazo de 25 anos para pagamento, em até 300 prestações, corrigidas pela generosa Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), hoje em 5%, em vez da Selic, que está em 11%.
Além disso, ao ser consolidada, a dívida sofrerá correção retroativa pela TJLP, "em substituição aos juros calculados na forma da legislação aplicável à época da ocorrência dos respectivos fatos geradores".
Não bastasse isso, o projeto prevê a criação de mais duas loterias para ajudar a quitar os débitos e elimina o Imposto de Renda que incide sobre a Timemania, loteria já existente para socorrer os clubes.
O Ministério da Fazenda entende que o projeto resultará em perda de receita, sem que o texto tenha deixado claro como esse prejuízo será compensado, o que viola a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Mas o Ministério do Esporte bancou a iniciativa.
Em troca da renegociação, o projeto prevê regras rígidas de administração e a responsabilização judicial de dirigentes de clubes que não reduzirem suas dívidas, além do rebaixamento desses times.
A julgar pela habilidade com que os presidentes de clubes e federações driblam punições desse tipo, no entanto, a ameaça contida no projeto tende a ser inócua.
Está mais do que na hora de parar de tratar dirigentes e clubes de futebol como se fossem merecedores de consideração especial.
Não se pode aceitar que deixem de pagar o que devem aos cofres públicos, com a desculpa de que não têm recursos, enquanto gastam cifras obscenas com seus astros.