Ontem vi na CNN uma reportagem sobre o Brasil, a propósito do crack na periferia do Rio. Nunca vi barra tão pesada da miséria brasileira, com corpos semimortos, sujeira e desespero mudo.
A repórter americana estava à beira de um colapso nervoso com a degradação do País, alertando estrangeiros civilizados sobre o perigo de vir à Copa.
Já andei por fundos sertões e não sou criança, mas parecia que estávamos na Nigéria, na área do Boko Haram, um daqueles lugares mortos que não fazem parte nem do mundo pobre.
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Ficou-me claro que aqui já vivemos uma "pós-miséria" incurável, africanizada. A miséria se aprofundou.
Chocado, me sentei para escrever este artigo. Comecei a fazer reflexões "sensatas" sobre o que fazer, na base do "precisamos" disso, "precisamos" fazer aquilo, precisamos tomar providências, etc. "Precisamos."
De repente, me bateu: para quem estou falando? A quem me queixo? A quem recorrer? Minhas perguntas caem no nada.
Como fazer as instituições refletirem e agirem, se a pós-miséria atinge não somente os miseráveis, mas degrada as maneiras de combatê-la?
A miséria das ruas e dos desvalidos, do crack , do abandono, deriva-se da impotência das instituições e vice-versa.
São duas misérias interagindo, acopladas: a ativa (política) e a passiva (os desgraçados). Criadores e criaturas.
As manifestações de junho, milagrosas e belas, ficarão sem respostas, porque não há o que responder e como responder.
Quem? Uma presidenta (sic) enjaulada no "presidencialismo de cooptação", que depende dos congressistas picaretas?
Quem? O Judiciário aleijado, com leis de 100 anos atrás?
Por isso, escrevo este artigo pessimista, sim; quem achar deprimente, pare de ler. Mas tenho de continuar; não sei bem para que nem para quem. Mas, escrevo...
A brutalidade está atingindo o País de forma inédita. O subsolo das manifestações de classe média é a violência primitiva dos "lúmpens" (miseráveis inúteis) que está aparecendo.
No mesmo registro das donas de casa que protestam contra a carestia ou de jovens contra a Copa, matam-se pessoas por nada, linchamentos, privadas voadoras, cadáveres cortados a peixeiras e costurados ao sol com pinos de guarda-chuva, mortos nas Pedrinhas dos Sarney, pais que matam filhos, crianças se degolando, etc.
Não adianta ficar repisando os óbvios erros desse governo, que deixarão sobras terríveis para quem vier -- seja Dilma, Lula (será que ele quer?) ou a oposição.
A democracia subestimada pelo PT levou a um voluntarismo medíocre que "faria" a remodelação da realidade de modo a fazê-la caber em premissas ideológicas.
Seus erros são tão sólidos que chego a pensar que visam a apodrecer as instituições "burguesas" por dentro, numa espécie de "gramscianismo pela corrupção".
Isso já está diagnosticado, mas os renitentes intelectuais orgânicos dirão: "O PT desmoralizado ainda é um mal menor que o inimigo principal: os neoliberais".
E assim vamos.
Estamos entrando numa pós-violência e numa pós-miséria -- eis a minha tese. Há uma africanização de nossa desgraça, a ponto de ela não ser mais reversível. E não era assim.
O Brasil sempre contou com a possibilidade de melhorias. Sempre vivemos o suspense e a esperança de que algo ia mudar para melhor.
Isso parece ter acabado. É possível que tenhamos caído de um "terceiro mundo" para um "quarto mundo", como já nos consideram analistas do exterior. O quarto mundo é a paralisação das possibilidades.
Quem vai salvar as 300 meninas sequestradas na Nigéria, quem vai resolver o Sudão, a Líbia?
E aqui? Quem vai resolver o drama brasileiro que está entrando no mesmo clube?
As informações criam apenas perplexidade e medo, mas, como agir?
Não há uma ideologia que dê conta do recado. E, na falta de soluções, recorrem a velhos métodos políticos já testados que falharam.
No caso brasileiro, se Dilma for reeleita, o falhado "bolivarianismo" tende a aumentar.
No Brasil, vivemos com a insolubilidade e, diante dela, só temos duas hipóteses: ou a convivência com o absurdo e o desespero, tarefa dificílima até para filósofos ou, então, surgirá um autoritarismo populista carismático, quase "religioso", para manter a vida social funcionando, com os privilegiados trancados em casa ou em Miami, com a patuleia bem controlada.
Resolver os problemas do País de desigualdade, ignorância, fome, é tão difícil como democratizar o Boko Haram.
Não temos meios, como disse Baudrillard -- "temos apenas os frágeis instrumentos dos direitos humanos".
É uma espécie de colheita; com o crescimento da população, das informações, dos desejos, todos os problemas plantados há séculos estão irrompendo ao mesmo tempo.
Já tivemos uma miséria dócil, controlada, e nada se fez porque ela não ameaçava.
Já usufruímos de vários séculos da estupidez popular para manter nossos privilégios.
Já elegemos, "salvadores da pátria" que sempre nos ferraram desde o golpe militar da República até Getúlio, Jânio, 64, Collor, Lula. E deu em nada.
Como infiltrar um espírito mais "anglo-saxônico" nesse corpo ibérico, inerte, "anestesiado e sem cirurgia"? Hoje, é tarde demais.
O que mais me grila é que não parece se tratar de um período histórico passageiro que, uma vez terminado, o País volte ao "normal". Não.
É um salto para outra anormalidade sem-fim; é uma mudança de estado. Não é uma doença que passa; é uma anomalia incurável.
E aí? Perguntarão os leitores a esse pessimista bodeado? Bem...
É possível que Lula volte. Será? Ele deve estar analisando as possibilidades.
Como só pensa em si mesmo, se ele achar que é muita aporrinhação, desiste. Se não, ele volta. E aí, sejam bem-vindos ao Quarto Mundo!
Minha filha Juliana Jabor, antropóloga e psicanalista, escreveu outro dia: "Lula poderá se apropriar da situação, com seu carisma inabalável, para ocupar a 'função paterna' que está vaga desde o fim do seu governo. Eleito de novo, a multidão se transformará, aí sim, em 'massa'. Os 'movimentos' perderão o seu caráter de produção de subjetividades e se transformarão numa massa guiada por um líder populista".