Copa das Copas? Ou das lorotas? 15/05/2014
- Eugênio Bucci*
Antes mesmo de o escrete canarinho pisar os abastados gramados inacabados, a máquina publicitária do governo federal já entrou em campo.
Tomou conta de todos os intervalos comerciais da TV. Com força. Com garra. Com vontade. Com força total.
E também com uma dose considerável do que poderíamos chamar de doideira oficialista: em pleno país do futebol, onde supostamente a maioria dos nativos se delicia vendo jogadores dando chutes na bola enquanto um juiz corre atrás deles com um apito na boca, a propaganda do governo quer convencer o povo de que Copa do Mundo vale a pena, é legal, é boa à beça.
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Coisa estranha, convenhamos.
Antes, o governo queria porque queria fazer a Copa no Brasil pois isso traria a felicidade geral da Nação, sabidamente aficionada desse esporte exótico.
Agora, precisa gastar dinheiro público para encorajar a Nação a ficar feliz, feliz no geral e no particular, porque a Copa vai ser uma apoteose.
Vai ser, como diz o locutor chapa-branca, "a Copa das Copas".
"Entende?", diria o Pelé.
Aí você pergunta: Mas o que é que está havendo?
Será que existe no governo alguma desconfiança de que "não vai ter Copa"?
Qual a lógica dessa faraônica operação de marketing?
Por acaso o Palácio do Planalto, tão dado a pesquisas de opinião, andou descobrindo que o brasileiro agora começou a odiar futebol?
São perguntas que merecem alguns minutos da nossa atenção.
As autoridades federais parecem aflitas, o que é esquisito.
De um lado, providenciam a força bruta para atuar como leão de chácara dos estádios.
De outro, despejam em cima da sociedade este interminável e sufocante blá-blá-blá publicitário, pago pelos cofres públicos.
Quanto à força bruta, a Presidência da República mandou convocar milhares de soldados do Exército para vigiar bem de perto os cidadãos que pretendem protestar.
Temem que as polícias, sozinhas, não deem conta da repressão.
A própria presidente Dilma Rousseff já falou que não quer saber de manifestações atrapalhando o espetáculo.
Em Jati, no Ceará, há dois dias, ela declarou que "quem quiser (se) manifestar não pode atrapalhar a Copa".
Com a originalidade retórica que lhe tem sido peculiar, expressou a sua presidencial opinião:
"Acho que a Copa tem todas as condições de ser um sucesso. Estamos garantindo a segurança. A conjunção de forças federais com as Polícias Militares dos Estados, a Força Nacional, tudo isso vai assegurar que ela seja feita pacificamente".
Do lado do blá-blá-blá publicitário, o estilo é um pouco menos tecnocrático, embora tente provar, por meio de cálculos devidamente tecnocráticos, que esta Copa -- já famosa pela gastança de verba pública e pelo desperdício sem critérios em obras que não ficarão prontas a tempo -- tem, digamos, um custo-benefício imbatível.
No fim de tudo, você, brasileiro, pode apostar, vai sair no lucro.
Entende?
A matemática da oratória ufanista é a seguinte (vamos transcrever aqui um trecho do discurso oficial):
"Com o esforço e o talento do brasileiro, conquistamos o direito de sediar a Copa de 2014. É campeããão! Só com turismo e serviços, a realização da Copa movimenta R$ 142 bilhões na economia".
Sem contestar os R$ 142 bilhões, valeria pedir licença para indagar, com todo o respeito:
Desde quando "sediar a Copa" é um direito?
Se não é, digamos, um direito propriamente dito, por que insistir nessa linguagem meio reivindicatória, meio sindicaleira?
Será por que esse palavreado aproxima a publicidade oficial da publicidade partidária do PT, que também está no ar por estes dias?
É bem verdade que a propaganda do PT não tem nada que ver com futebol; descamba para um terrorismo simbólico um tanto baixo, afirmando que o brasileiro não vai querer "voltar atrás" porque isso significaria desemprego, tristeza e criancinhas sem sorvete (só faltou, ali, alguém contratar a Regina Duarte para arregalar os olhos e dizer "eu tenho medo").
Ao insistir na tese de que sediar a Copa é um "direito" conquistado, porém, o anúncio do governo ecoa a retórica dos publicitários eleitorais do PT, como se a alegria só estivesse ao alcance daqueles que não voltam atrás e aderem obedientes à euforia oficial, seja na Copa, seja nas eleições.
Por esse caminho sutilmente partidário, a investida da comunicação governamental se projeta como um chamamento cívico.
E meio assim, de esquerda, entende?
Chama o povo para cerrar fileiras com a presidente da República, estigmatizando, segregando e demonizando todos os que não estão de acordo com este circo padrão Fifa.
A coisa é muito simples: quem não veste a camisa quando a presidente manda não é bom brasileiro.
E, se você quiser saber exatamente o que significa ser brasileiro, fique tranquilo.
A publicidade chapa-branca explica direitinho, pedagógica e patrioticamente:
"Quando te perguntarem o que é ser brasileiro, diga 'um povo feliz, muito batalhador. Gente forte e firme, que pega no batente, que não abre mão do que já conquistou. Que cria, que sonha. Que entra em campo e faz o seu papel. Que vence as fronteiras e tem talento pra ganhar o céu'. Eu quero cantar pro mundo inteiro o que é ser brasileiro. O maior espetáculo da Terra vai acontecer aqui, na nossa casa. E dentro e fora de campo vamos encantar o mundo com nosso talento e nossa garra. Isso é ser brasileiro. Porque essa é a nossa Copa. Essa é a Copa das Copas".
Entende?
O governo anda em alerta total com as críticas à Copa do Mundo. Quer construir um sólido consenso a favor (dos jogos e da reeleição, tudo de uma vez só).
Vai ser por bem (supondo-se que o marketing governista seja o argumento "do bem", o argumento bonzinho) ou por mal (os garotos fardados de verde-oliva estariam no papel de bad cop).
Às vezes, dependendo do clima político, até a alegria é autoritária.
...
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.