O que (e quem) está por trás da ampliação do RDC 20/05/2014
- HAROLDO PINHEIRO*
É muito provável que o Senado decida nesta terça-feira, 20, o futuro da MP 630/13.
A medida, em sua versão atual, universaliza o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) para todas as licitações de obras públicas da União, dos estados e dos municípios.
Os arquitetos e urbanistas são contra tornar regra o que deveria ser exceção. Os engenheiros também. Idem alguns sindicatos de pequenos e médios construtores.
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E mesmo na base governista no Senado há quem critique com veemência o projeto de lei originário da MP.
Ao que parece, só a senadora e ex-ministra Gleisi Hoffmann (PT-PR) está a favor e diz isso em público, ainda que com confusos entendimentos sobre as etapas, os processos e as responsabilidades técnicas das obras públicas.
Fica no ar, então, uma pergunta: a quem, afinal, interessa o RDC amplo e irrestrito?
Se apreciam a democracia, essas forças deveriam aparecer e apresentar seus argumentos.
Por que se escondem?
Como relatora da matéria, foi a ex-ministra da Casa Civil quem propôs a generalização do que deveria ser diferente. Não era esse o desejo inicial da presidente Dilma Housseff.
Ao editar a medida, no final de 2013, motivada pela crise prisional do Maranhão, a presidente queria ampliar o RDC apenas para obras de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo.
“Apenas” em termos, porque criado para atender a realização das obras públicas com prazo compromissado para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, o regime diferenciado já passara antes por diversas ampliações para empreendimentos tidos como emergenciais, como o PAC.
O projeto atual exorbita a proposta original da Presidência da República.
Pelo bem do interesse público, ele não pode prosperar.
O mais recomendável seria analisar os prós e contras do RDC no fórum da revisão da lei das licitações (8666/93), também em tramitação no Senado.
Se aprovada como está a MP 630/13, a lei das licitações será revogada na prática, jogando-se no lixo todo trabalho dos relatores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Katia Abreu (PMDB-GO), baseado em diversas audiências públicas, com participação das instituições que têm o dever cívico de contribuir para o tema, inclusive o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR).
O planejamento e o gerenciamento público do País têm sofrido duros baques nas últimas décadas.
Todo um conjunto de pensamento estratégico e patrimônio técnico construído com vigor, nas mais diversas esferas, tem sido menosprezado em troca de ações imediatistas, dispersas e em geral de baixa qualidade e economicidade.
Muitos projetos da CEF estão parados porque não há quadros profissionais suficientes ou capacitados para realizar as especificações técnicas necessárias.
Existem hoje 1.718 municípios no Brasil que, pelo Estatuto da Cidade, deveriam ter elaborado Planos Diretores em 2006, mas que até agora nada fizeram.
Com a universalização do uso do RDC, o Estado brasileiro assume oficialmente sua incapacidade de planejar e administrar a infraestrutura do País e os espaços públicos de nossas cidades.
O regime, através da “contratação integrada”, transfere para as grandes empreiteiras as tarefas de projetar, realizar as obras e até promover testes do que elas próprias conceberam e construíram.
Mais: pela MP em discussão, tais empresas poderão também assumir a operação ou a manutenção do bem público por até cinco anos, sem qualquer outra licitação para essa Parceria Público-Privada.
Seriam elas as protagonistas que não saem dos bastidores?
Quem mais tem condições de se mobilizar para fazer o que o Estado deixou escapar de suas mãos?
É correto ficarmos reféns de empreiteiras que, como lembram muitos senadores, são os maiores contribuintes das campanhas eleitorais?
Não há como contratar com seriedade uma obra sem que ela tenha um projeto completo feito antecipadamente (e de forma independente) ao certame licitatório.
Veja-se o exemplo do que ocorre com as obras do “legado” da Copa da FIFA em que o regime diferenciado de contratação foi efetivamente utilizado.
Levantamento feito pelo Sinaenco (Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva), em parceria com o CAU/BR, mostra que de 16 contratos assinados para obras de mobilidade urbana e acesso aos estádios, apenas um foi concluído até agora, a menos de um mês do campeonato mundial.
E de 26 contratos para trabalhos diversos em aeroportos, utilizando o mesmo expediente, só três foram encerrados no prazo.
Nossas fontes são o Portal da Transparência do governo federal e a Infraero.
Fica comprovado, na prática, que ao facilitar os procedimentos licitatórios, o RDC pode agilizar a contratação, mas a partir daí tudo é imponderável.
Não há como cobrar qualidade, custo justo e cumprimento de prazo de algo contratado “em branco”, só pelo menor preço.
Há muitos outros itens que exigem uma análise com bom senso.
Como a possibilidade de “recomposições de preços” ou “alterações de projetos”, o que desmonta a tese de que o RDC impede reajustes contratuais.
Não é à toa que correm no STF duas ações de inconstitucionalidade contra o instrumento.
É preciso saber se os cidadãos, que também são contribuintes e eleitores, estão confortáveis com esse quadro.
A ex-ministra afirma que prefeitos e governadores são os maiores interessados na liberação geral proposta e têm exercido forte pressão junto ao governo.
Que eles venham a público, então, manifestar democraticamente seus argumentos.
Da mesma maneira como estamos fazendo no caso da lei 8.666/93, cuja revisão apoiamos, para que o Brasil tenha uma legislação licitatória moderna, que agilize processos, mas que seja inquestionável.
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*Haroldo Pinheiro é presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil.