Sociedade, política e desordem social 21/05/2014
- Mario Cesar Flores*
De um lado, a verdade oficial: as crises são pontuais, o País vai bem. Do outro, a realidade: atendimento caótico à saúde, má qualidade da educação, economia capenga com crescimento pífio. E permeando tudo, insatisfação, desassossego social, insegurança e desrespeito generalizado à lei. Este artigo se refere à sociedade e à política no desassossego social e desrespeito à lei.
Nossa desigualdade - de origem histórica, mas evidenciada nos últimos anos de voracidade consumista - e os desacertos na condução política do País são de fato a causa protagônica da insatisfação social e de suas manifestações violentas, são a causa maior da epidemia de criminalidade que flagela o Brasil. Mas também é verdade que a desordem encontra ambiente psicossocial complacente ou conformado - se não simpático - no ânimo do povo. Por sua vez, o mundo político inclina-se à leniência, atento aos reflexos eleitorais do humor popular: sua condenação do delito é complementada por uma combinação de complacência justificada pelas causas sociais do delito, com a critica de ranço demagógico aos métodos de imposição da ordem. Em suma, existe na sociedade uma propensão a confundir liberdade democrática com licenciosidade, complementada na política pela tolerância nebulosa.
Exemplos de sintomas da ambiguidade: no cumprimento de decisão judicial de reintegração de posse a polícia é sempre acusada de violenta, já a resistência à ação policial com paus, pedras e coquetéis molotov é vista com tolerância, naturalmente propensa a legitimá-la. Em conflitos entre policiais e delinquentes a polícia é a priori responsável pelas vítimas inocentes - motivo de protestos e vandalismo difuso (já que só os policiais matam inocentes, não seria o caso de retirar a polícia das áreas conflituosas...?). Dezenas de pessoas que pleiteiam algo, ou reclamam de algo, bloqueiam ruas agredindo o direito de dezenas ou centenas de milhares e o desbloqueio é "negociado" durante horas de sacrifício para o povo atingido. Com sabor de penitência "politicamente correta", a ênfase conferida à atribuição das corregedorias da polícia em favelas do Rio de Janeiro: ouvir queixas sobre abusos policiais. E em claro descaso pela ordem constitucional: a leniência (no caso, mais política) com as "greves" das PMs. Negociar o fim de "greves" de militares é rendição ao desafio à Constituição. Haveria tolerância similar se militares das Forças Armadas usados na segurança pública se declarassem em greve por seus interesses? Provavelmente não, com razão. A continuar a leniência, para proteger a Constituição da violação consentida conviria rever o status militar das PMs.
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Quanto à mídia: em sintonia com o ânimo popular, parte dela tende a criticar mais o uso da força no restabelecimento da ordem do que o delito em si e a resistência violenta à ação policial. Essa tendência sugere preocupação com as Forças Armadas na segurança pública: no clima vigente, qualquer conflito com vítima será espetacularizado com viés antimilitar, pelo menos até que se evidencie o contrário, quando a opinião pública já estará condicionada.
Alguns programas de TV e rádio, pretendidos como noticiosos, fazem do crime entretenimento: a título de condená-lo sensacionalmente, fatos e tragédias que mereceriam minutos de notícia comedida e criteriosa se estendem por dias ou semanas, num circo-espetáculo repetitivo (imagens e falas) de mau gosto, que banaliza o crime divertindo a audiência vulnerável a esse tipo de anticultura.
Esse quadro de convivência melíflua com a desordem e a ilegalidade está nos levando à tolerância na distinção entre o certo e o errado, à vulgarização complacente e/ou conformada do delito, do trivial ao crime grave, do desrespeito à faixa de pedestres à corrupção no serviço público, à queima de ônibus, assaltos, invasões, saques, ataques a bancos e até a instalações e viaturas policiais; está nos levando à lassidão comportamental na "cultura popular brasileira". Reflexo desagradável do contexto: a imagem de país inseguro e em desordem, que está sendo divulgada no mundo, no cenário da Copa.
A solução decisiva desse nosso macroproblema depende de correções em nossas políticas socioeconômicas (educação, saúde, redução da desigualdade). E para que elas ocorram precisamos de um paradigma político em que predomine mais o estadismo do que o populismo ilusório, de retorno eleitoral imediato. Um paradigma político capaz de reconstruir a credibilidade do Estado, a esperança e confiança no Estado, em suas instituições - sobretudo nas políticas hoje desacreditadas - e na democracia, cujo descrédito é evidenciado no alto porcentual de cidadãos que não votariam se o voto fosse facultativo. E também capaz de controlar o vale-tudo vigente no País, dentro da moldura do Direito, mas sem concessões simpáticas à desordem - até porque correções profundas de natureza econômica e social seriam inviáveis em clima de insegurança e desordem.
É possível isso? Convém que seja. Tolerância com o anormal não evita - na sociedade consciente até estimula - a percepção popular da incompetência e improbidade na gestão pública. Medidas que pretendem a segurança, a exemplo das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas cariocas, não "compensam" a ausência ou atuação insatisfatória do Estado no múltiplo espectro do apoio social - haja vista os conflitos em favelas ditas pacificadas e os protestos agressivos às UPPs, que refletem o repúdio às instituições do Estado no ânimo do povo mal atendido. A insatisfação, hoje bem expressa em protestos contra gastos públicos na Copa, em vez de no apoio social, pode, mais dia, menos dia, sufocar a tolerância e atingir nível insuportável - hipótese já insinuada em junho de 2013, explodindo em convulsão de objetivos e rumos incertos, mas que provavelmente desembocarão em algum detrimento da democracia.