Cotas e conveniências 23/05/2014
- Folha de S.Paulo
Num gesto populista e com prováveis consequências negativas para o país, o Congresso aprovou projeto de lei que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos federais, incluindo os de autarquias, fundações e estatais, como a Petrobras. Consta que a presidente Dilma Rousseff (PT) sancionará a proposta em breve.
Apresentado pelo governo, o texto não esconde seu viés militante. Marginaliza os conceitos "pretos" e "pardos", tradicionalmente utilizados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e consagrados na lei que fixa cotas em universidades federais, e usa, em seu lugar, o genérico "negros".
O termo é enganoso. Resultante da soma de pretos (7,6% da população, segundo o Censo 2010) e pardos (43,1%), escamoteia o fato de que estes últimos não são nem "negros" nem "brancos".
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O aspecto mais problemático vem a seguir. Como de costume nesses casos, o critério de elegibilidade às vagas reservadas é a autodeclaração; só que, a fim de coibir fraudes, o projeto determina que serão eliminados aqueles que prestarem declarações falsas.
Ou seja, pretende-se instaurar uma espécie de tribunal racial apto a julgar se os candidatos "negros" são mesmo pretos ou pardos.
A proposta é das mais infelizes. Já não seria pouco lembrar que inexistem definições jurídicas ou científicas do que sejam negros, pardos e brancos. Num país miscigenado como o Brasil, a busca por fronteiras étnicas mais cria problemas do que os resolve. Introduz um odioso fator de cisão social.
Não se ignora o racismo presente na sociedade brasileira; qualquer cruzamento dos dados de raça com indicadores de sucesso socioeconômico o evidencia. É um despropósito, porém, combater esse tipo de desigualdade realçando diferenças calcadas na cor da pele -- justamente o que se quer superar.
Se há boas razões para tentar compensar desvantagens relacionadas à condição social -- e esta Folha reconhece os méritos das cotas sociais --, não faz sentido privar pobres brancos desse benefício.
Mesmo os que defendem ações afirmativas baseadas em origem étnica, entretanto, têm dificuldades para estender a lógica das universidades aos postos de trabalho. Trata-se, na educação, de melhorar as possibilidades competitivas, inclusive de empregos, daqueles prejudicados pela origem familiar.
Em particular no serviço público, a meta da autoridade que faz a seleção deve ser a de recrutar o candidato -- seja qual for a cor de sua pele– mais capaz, que possa oferecer o melhor serviço ao cidadão que paga seu salário. O princípio da meritocracia, nesses casos, não pode ser enfraquecido; muito menos a título de satisfazer conveniências políticas e eleitorais.