O PT perde o pelo, mas não perde o vício. Como se já não houvesse motivos de sobra para a insatisfação popular difusa e generalizada que se manifesta diariamente, e quase nunca pacificamente, nas ruas, o comando do partido volta a insistir em recolocar na agenda política uma questão já consensualmente resolvida pela sociedade brasileira, mas que tem alto potencial de incandescência emocional: a revogação da Lei da Anistia.
Reunida na segunda-feira em Brasília, a Executiva Nacional do partido definiu as diretrizes do programa de governo petista. E incluiu entre elas a reivindicação da punição dos crimes praticados por agentes do Estado -- e apenas estes -- durante a ditadura militar, sob o argumento de que isso ajudaria a "impedir a continuidade dessas práticas nas Forças Armadas e de Segurança, na Justiça e no sistema prisional, na criminalização dos movimentos sociais e na discriminação contra camadas populares".
O acento palanqueiro-populista desse argumento escancara a principal característica de uma retórica que apela irresponsavelmente à cizânia, à divisão da sociedade brasileira entre "nós" e "eles", os bons e os maus, e que inclui entre estes últimos aqueles que "criminalizam" os movimentos sociais e "discriminam" as "camadas populares". Ou seja, todos os malvados que cometem o crime de não ser petistas.
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Essa retórica eleitoral lulo-petista encarna um espírito diametralmente oposto ao da conciliação nacional que permitiu, 35 anos atrás, a transição pacífica do regime ditatorial para o democrático que viria a possibilitar, quase um quarto de século depois, a eleição de um ex-metalúrgico à Presidência da República.
O retorno dos militares ao quartel e a consequente devolução à sociedade civil de, entre outros direitos, o de escolher nas urnas seus governantes, foi uma conquista das forças políticas que, em nome dessa sociedade, se reuniram numa frente ampla que, ao cabo de duas décadas de resistência, teve a capacidade de negociar com os então detentores do poder uma transição pacífica para a democracia.
Foi uma luta facilitada, é claro, pela evidência de que o regime militar, cada vez mais repudiado pela consciência democrática do povo brasileiro, cedo ou tarde acabaria se rendendo ao desfecho de um processo de "distensão lenta e gradual" iniciado, sob pressão popular, já no governo do general Ernesto Geisel.
Esse processo só não se desenvolveu mais ampla e rapidamente porque algumas lideranças da frente ampla resistiram o quanto puderam a uma negociação da qual foi peça decisiva a Lei da Anistia, proposta ao Congresso no segundo semestre de 1979 pelo último presidente-general.
E não foi por mera coincidência que essas lideranças que não desejavam a conciliação, mas o confronto, Lula à frente, se tornaram pouco tempo depois as fundadoras do Partido dos Trabalhadores.
Já seria lamentável se essa renovada disposição do PT de tentar retomar a discussão da Lei da Anistia, no ambiente pouco sereno e racional dos palanques, apenas denunciasse o apego oportunista ao velho vício do confronto maniqueísta que é a marca registrada de Lula.
A tentativa é, porém, mais um atentado ao espírito democrático da sociedade brasileira, que o PT não hesita em sabotar em benefício de sua obsessão de permanecer no poder a qualquer custo.
De acordo com o secretário-geral do PT, deputado Geraldo Magela (DF), a revogação da Lei da Anistia é necessária porque "o Brasil precisa se reencontrar com a verdade histórica".
Uma verdade que está sendo diligente e eficientemente perseguida pela Comissão Nacional da Verdade e também por aquelas de âmbito estadual ou municipal.
Mas o PT não se satisfaz com a verdade. Quer castigar aqueles que não foram punidos porque a sociedade brasileira decidiu anistiá-los num pacto que permitiu a reconquista pacífica do regime democrático.
Para o PT, anistia não vale para todos. Só vale para os que cometeram crimes na luta contra a ditadura.