O decreto e a realidade 20/06/2014
- O Estado de S.Paulo
Os sofismas são distorções da realidade. Captam um aspecto e extrapolam o seu âmbito, começam com uma meia-verdade e terminam com uma mentira completa.
E esse é o percurso que o governo federal tem seguido na defesa do Decreto 8.243.
Cria ele novos conselhos?
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Não. Se apenas criasse conselhos, não haveria maiores problemas.
Seria "apenas" uma burocratização a mais na já burocratizada administração pública federal.
Mas não foi isso que provocou reações contrárias a ele no Congresso.
O decreto cria algo de extremo interesse dos atuais ocupantes do Poder Executivo -- uma "política de participação social" gerenciada por ele.
É algo mais profundo do que a mera existência de conselhos, e o seu perigo reside nas segundas intenções.
Nada é dito explicitamente. E o governo trata os seus opositores como ignorantes, alegando que existem conselhos desde 1937.
Só para lembrar: 1937 foi o ano em que o Brasil mergulhou na ditadura do Estado Novo. É assim que quer defender o decreto?
O governo sustenta que é piada de mau gosto da oposição chamar o Decreto 8.243 de bolivariano.
Infelizmente não é.
Alegar que são conselhos consultivos é fugir do problema, escorregando novamente para o sofisma.
Chávez e seus "muchachos" não estrangularam a democracia em seus países dizendo que assim o fariam. Sufocaram a democracia com as mais belas palavras, "conferindo o máximo poder ao povo".
É verdade que o decreto não iguala Dilma a Chávez. O decreto está vigente e isso não nos transformou ipso facto numa Venezuela. Mas o decreto traz no seu bojo a mesma lógica, idêntica retórica.
"A representação tem muitos defeitos", afirmou o ministro Gilberto Carvalho. É óbvio, mas não pode ser um ato do Executivo o meio legal para corrigir essa representação, e ainda por cima encarregando o próprio Executivo de coordenar essa nova representação, com a sua "política de participação social".
Aí está o problema.
Na cortina de fumaça que é a defesa do decreto pelo Executivo, afirma-se que a oposição está criando um problema político. Não se trata de um "problema político", mas de um problema institucional, que logicamente afeta a vida política.
A questão institucional, em sua essência, é a vontade do Executivo de "alterar" (se vai piorar ou melhorar é uma questão sobre a qual cada um terá sua opinião) a forma de participação social.
Ora, não cabe a ele "reequilibrar" representação política nem muito menos proclamar-se gerente dessa nova "política de participação social".
Representantes do governo afirmam que estão dispostos a dar todas as explicações necessárias ao Congresso. Até o momento, tiveram inúmeras oportunidades para fazê-lo, mas o que deles só se ouviu foi mais do mesmo.
Na prática, dizem: "Acreditem em nós, não faremos nenhum mal à democracia representativa com a nossa política de participação social".
As instituições de um país são organizadas para diminuir a arbitrariedade pessoal, não para criar feudos e atribuí-los a "bonzinhos".
A constitucionalidade de um decreto não depende das declarações de boa intenção dos seus criadores. Decorre do que está posto no papel, e o que lá está não é nada republicano.
Não é o medo da voz popular que leva o Congresso a se opor ao Decreto 8.243. É o receio de que alguns, sob a batuta do Executivo, se sirvam dele para monopolizar a voz da sociedade.
Uma rendição dos deputados e senadores a este ato da Presidência significaria ferir o mandato que a sociedade brasileira lhes conferiu.
É seu dever garantir a pluralidade de vozes da população, não apenas alguns corais ensaiados.
Criar e organizar os Conselhos pretendidos por projeto de lei -- como sugerem alguns congressistas -- não resolve o problema.
Por lei ou por decreto, a ideia é ruim e perigosa, porque atropela as instituições ao dar ao Executivo o direito de organizar -- ou melhor, domesticar -- a "participação social".
Por lei, o máximo que o Congresso poderá fazer é maquiar a ideia, dando-lhe ares de respeitabilidade e legitimidade.
Por isso, a emenda poderá ser pior do que o soneto.