O beijo uruguaio 03/07/2014
- Contardo Calligaris*
Vários leitores me pediram para explicar por que Luis Suárez, o atacante da seleção do Uruguai, morde seus adversários (ele já mordeu três, que se saiba).
Posso apenas me perguntar por que a mordida de Suárez escandalizou a muitos e suscitou uma punição que alguns julgam excessiva. Se Suárez tivesse dado um soco no adversário, mesmo longe da bola, ele seria, no máximo, expulso. Você se lembra da cabeçada de Zidane em Materazzi, na final da Copa de 2006? Zidane levou um cartão vermelho.
Já no caso de Mike Tyson, que mordeu Evander Holyfield durante a luta pelo título dos pesos pesados, em 1997, a consequência foi mais séria: Tyson arrancou (mas não comeu) um pedaço da orelha de Holyfield. Tyson, desqualificado e multado (US$ 3 mi), perdeu a licença de boxeador. Só graças a um processo de um ano e meio ele recuperou o direito de boxear.
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Zidane se sentiu ofendido por Materazzi, que disse algo sobre a irmã de Zidane (trivial num campo de futebol). Tyson se queixava das cabeçadas (intencionais ou não) de Holyfield (não de Zidane). Não sei se Suárez alegou uma provocação de Chiellini para explicar sua mordida —se o fez, não foi no pedido de desculpas.
Nos meus esportes preferidos, morder é complicado. No futebol americano, o capacete tapa a boca dos jogadores com uma grade parecida com a máscara de Hannibal no "Silêncio dos Inocentes".
No hóquei sobre gelo, em tese, os jogadores profissionais já não têm mais dentes, pois é raro chegar lá sem ter recebido na cara quer seja o taco de um adversário quer seja o disco que, no hóquei, é o equivalente da bola (mas que é duro e viaja a mais de 140 km/h). De qualquer forma, no hóquei, jogadores que brigam tiram o capacete e se pegam a socos na cara.
Resta o rúgbi, em que os jogadores não usam capacete e têm alguns dentes sobrando. Num caso recente, em 2013, na Austrália, um jogador foi suspenso por oito jogos (punição comparável à de Suárez) por ter mordido o pênis de um adversário. A mesma pena foi infligida, em 2012, a um jogador inglês que mordeu apenas o dedo do adversário (irlandês).
Enfim, vários comentadores se indignam porque acham que a mordida, como defesa ou ataque, é infantil. Será que podemos tolerar, nos nossos terrenos de jogo, uma briga de parquinho? Entendo, e aplicaria essa reflexão aos puxões de cabelo (que não são raros: Marion Barber, quando jogava no Dallas Cowboys, não parava de se queixar de que os defensores o pegavam pelos dreadlocks).
Mas morder, por mais que seja tão frequente nas brigas de infância quanto puxar o cabelo, é um ato muito radical, e talvez seja por isso que ele suscita uma indignação especial. O que morder tem de radical?
Não é preciso ser Freud para entender que a boca (com ou sem dentes) é o órgão de nossas primeiríssimas paixões (que são, em geral, virulentas e, justamente por serem as primeiras, tornam-se incontroláveis quando são revividas mais tarde). Conhecemos o mundo chupando ou mordiscando objetos.
Aprendemos que a resposta do mundo a qualquer aspecto do nosso desamparo é um seio ou uma chupeta que alguém nos enfia na boca. Uma consequência disso é que, ao longo da vida, as gratificações orais nos parecem poder compensar qualquer frustração. Morreu alguém ou perdeu o emprego? Que tal um chocolate? Claro, o chocolate não compensa nada, mas o amor (materno) tenta nos mostrar que a satisfação oral cura qualquer tristeza.
Agora, um bebê não é exatamente um cara legal. Por exemplo, ele pode querer que o seio seja dele, como o chocolate ou a chupeta, e retribuir o amor materno com uma paixão absolutamente destrutiva.
Amamos tanto nosso objeto preferido que queremos devorá-lo, colocá-lo dentro de nós, digerido e incorporado. Para compensar nossa voracidade assassina diremos que o devorado sobrevive dentro de nós. É a desculpa do canibal: acabo com você, mas não se preocupe, suas qualidades viverão em mim.
Em suma, a mordida evoca, para todos nós, uma agressividade extrema que nos indigna por ser muito familiar: é a expressão mais óbvia da vontade de acabar com o outro (com sua autonomia, com sua existência separada de nós) na qual deságua facilmente a grande paixão amorosa.
Uma mulher me conta que, no fim de semana, o marido, no transporte passional de um beijo, mordeu seu lábio com força. Doeu, e ela se queixou. Ele se desculpou assim: "Meu amor, foi um beijo uruguaio".
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*Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.