Deixem o Brasil fora disso 10/07/2014
- O Estado de S.Paulo
Sob o impacto da estonteante goleada de 7 a 1 que a seleção alemã infligiu ao time nacional, não faltou quem se pusesse a atribuir o vexame às mazelas brasileiras, de que o resultado seria espelho fiel.
Associou-se a catástrofe no Mineirão, por exemplo, ao "atraso civilizatório" do País, numa referência implícita aos padrões superlativos da Alemanha em praticamente todos os campos.
Chegou-se a lembrar que, no cômputo de Prêmios Nobel conquistados, a grande nação europeia esmaga o Brasil por 103 a 0. A reação é compreensível, mas nem por isso menos equivocada.
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É da condição humana, desde sempre, encontrar um sentido para fatos e situações que desafiam a lógica, o senso comum e as expectativas baseadas em experiências recorrentes.
Daí, entre inumeráveis outras consequências, nascem as teorias conspiratórias, que imputam ações e acontecimentos adversos ou desconcertantes a planos urdidos nas sombras por quem quer que deles pretenda tirar proveito.
A isso se chama em ciência "relação espúria". Nela, eventos tidos como causas e efeitos ou não se conectam de forma alguma ou, quando sim, só depois de passar por um sem-fim de elos, como os de uma quilométrica corrente.
Uma de suas manifestações mais comuns é a chamada "sociologia de botequim" -- a confecção de teorias tão fáceis quanto mambembes sobre fenômenos sociais incomuns ou perturbadores.
No caso do baque de Belo Horizonte, o mais certo, talvez, seja falar em sociologia de velório.
Enlutados e inconformados com a perda repentina, absurda, do parente ou amigo próximo, alguns dos presentes tentam aquietar o seu pesar dando ao passamento razões que a medicina teria mais razões ainda para recusar.
Tamanha a envergadura do colapso da seleção que muitos não conseguem explicá-la pelo que se passou, ou deixou de se passar, no gramado.
Para esses, o futebol -- nisso incluído não só o jogo tal qual se desenrolou, mas ainda a qualidade dos times, o preparo de cada um, as táticas adotadas pelos respectivos treinadores, o seu grau de competência e tudo o mais que transcorre nos bastidores dessa multimilionária atividade -- não dá conta do ocorrido.
É preciso, afirmam, olhar em volta.
Simples assim: sendo o Brasil um poço de problemas, nada mais natural que neles tenha se afogado o escrete ao enfrentar a representação de um país que teria resolvido todos os seus.
O corolário consolador é que o naufrágio, quem sabe, sirva de choque de realidade para a superação das nossas piores carências.
Há, porém, um "pequeno detalhe": não foi o Brasil quem tomou uma sova histórica anteontem, mas os 11 jogadores escalados por um técnico que, assim como eles, trabalha sob contrato para uma entidade privada, a CBF, que, por sua vez, existe para dar lucro tanto quanto as suas congêneres do mundo inteiro, reunidas todas na famigerada federação da famiglia Blatter, a Fifa.
Além disso -- e à parte a manifesta superioridade tática do adversário -- o desfecho foi literalmente excepcional.
A sua causa evidente foi outra raridade, pelo menos em jogos entre seleções da primeira liga mundial: os 4 gols alemães em 6 minutos que entorpeceram o time de Luiz Felipe Scolari.
A chance de isso se repetir, joguem os selecionados dos dois países quantas vezes possam até o fim dos tempos, é ínfima.
No acumulado desde 1963, os canarinhos colecionaram 12 vitórias em 22 embates, ante 5 dos rubro-negros e igual número de empates.
Isso posto, o que diriam os que culpam os males do País pelos aberrantes 7 a 1 se a esquadra de Joachim Loew não tivesse ido além de uma vitória por 2 ou 3 gols de diferença?
Uma coisa, portanto, é a ilógica que torna o futebol fascinante, como observa o técnico argentino Alejandro Sabella. Outra, o Brasil.
De mais a mais, em matéria de más notícias, o governo já se incumbe de atingir os brasileiros com uma sequência interminável.
Para a vida real da população, a derrota diante dos alemães, conquanto "humilhante", como a imprensa do mundo inteiro se apressou a qualificá-la, é de uma irrelevância atroz perto de outro resultado dessa funesta terça-feira.
A inflação em 12 meses, medida pelo IPCA, chegou a 6,52%, arrebentando o teto da média estipulada pelo governo. Goleada é isso.