O chamado do abismo 23/09/2014
- Luiz Zanin - O Estado de S.Paulo
Os seis a zero que o Palmeiras levou do Goiás me fizeram lembrar da frase célebre de um filósofo sobre a atração que o abismo às vezes provoca. Em geral o tememos, mas existe quase um prazer inconsciente em enterrar-se nele de vez, pelo menos em determinadas situações. Humano que é, o futebol também expressa essa estranha tendência da nossa mente. Foi assim, me parece, na imortal lavada que a Alemanha aplicou no Brasil, os 7 a 1 fatídicos.
Lembro também do Palmeiras de anos atrás, perdendo de 7 a 2 do Vitória, em 2003. Um lance desse jogo ficou marcado em minhas retinas já tão fatigadas. Marcos, saindo do gol para rebater, furando bisonhamente a bola e toma mais um. Como explicar craque dessa grandeza cometendo uma jogada de nível inaceitável até mesmo em futebol de várzea? Apenas o chamado do abismo o explica. Outras goleadas tiveram essa marca, como os 7 a 1 do Corinthians diante do Santos ou os impensáveis 8 a 0 que o mesmo Santos levou em Barcelona.
Não são placares normais, pelo menos entre times profissionais, em países onde o jogo é praticado há muito tempo e cujo sedimento de profissionalismo e compreensão no trato da bola impedem desníveis tão brutais, que justificariam números dessa grandeza. Algo acontece nesses jogos e que parece desafiar a toda a lógica e compreensão. Pelo menos num primeiro momento.
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Um idiota da objetividade diria que não existe qualquer mistério. O time do Palmeiras é ruim mesmo, o clube não está na lanterna por acaso e o rebaixamento, no ano do centenário, tornou-se uma possibilidade concreta. Não nego nada disso. Só acho a explicação insuficiente, como em geral são as explicações apenas "objetivas", isto é, que desconhecem misteriosos fatores em jogo.
Quero com isso dizer que seria normal e até aceitável o Palmeiras perder para o Goiás por um, dois ou até três gols de diferença. Já seria humilhação suficiente ir para a lanterna do campeonato. Mas, não: tinha de apanhar de seis, ir ao fundo do poço, flertar com o abismo e nele atirar-se, de cabeça, como com gozo. Como num ímpeto suicida.
Tenho a impressão de que os fatores psicológicos dominam nesses momentos, nesses jogos excepcionais, marcados por placares fora da curva. Talvez a súbita e implacável consciência da inferioridade induza o time a uma espécie de paralisia irremediável. E, quando digo o time, me refiro também ao treinador, capaz de, nessas situações, cometer os piores desatinos, pensando que pode alterar o que está acontecendo, como se despertasse de um pesadelo.
Nesses momentos, a sensação de impotência leva o time à paralisia, e só dessa forma se explica cenas que se veem nessas ocasiões, atacantes entrando como querem na defesa, diante de zagueiros tontos e impotentes.
Diz-se do boxeador nocauteado, mas ainda em pé, que tem dificuldade em encontrar a lona. Já dormiu mas não consegue cair. A lona é seu alívio, a sua morte, simbólica da derrota na luta. E assim parece ser no futebol. A sucessão alucinada de gols, como a garantir que enfim tudo aquilo vai acabar, na verdade já acabou, e que não é preciso mais lutar, porque a partida é finda. O fascínio do abismo, enfim.
Vimos isso no Brasil x Alemanha. Se o time tivesse se fechado diante de um adversário superior, talvez perdesse de menos, e com dignidade. Mas seria preciso lutar, até mesmo por uma derrota honesta. Mas não, o Brasil desgovernou-se por completo e abriu caminho para a catástrofe.
Quando o Santos perdeu de oito do Barcelona, o desnível entre os dois era tamanho que parecia jogo entre um time de meninos contra um de profissionais de primeira linha. Essa diferença era tanta que o mais fraco simplesmente parou de lutar e entregou-se ao mais forte, como quem busca a simpatia do carrasco na vã ilusão de livrar-se da pena pela exibição da fragilidade.
O que espanta mais no caso de Goiás x Palmeiras é que, em tese, a distância entre os dois times não é assim tão grande. Cuidar do psicológico da moçada vai ser o principal desafio do Palmeiras pós-goleada. O moral da tropa deve estar no chão.