As lágrimas de Sofia 16/02/2015
- Luiz Felipe Pondé*
Estamos num momento pessimista no Brasil. Falta água, falta luz, sobra corrupto e a economia vai mal. A presidente parece uma deprimida furiosa e os seus aliados diretos são Fred Mercury e Pepe Legal.
O pessimismo é mortal numa economia de mercado, por isso os deprimidos de Brasília tentam desesperadamente dizer para nós, que pagamos a conta da bandalheira, que tudo está bem nos trópicos.
O mundo nunca foi tão violento! Fuzilamentos em Paris, cabeças cortadas na Síria, meninas assassinadas na África.
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Não creio que o mundo esteja pior, ele sempre foi ruim. Agora temos TV a cabo e internet. Sabemos mais de tudo. Depois da Segunda Guerra Mundial, ficamos viciados em acreditar que tudo seria um paraíso a partir de 1945, um parque temático de direitos e férias. Doce ilusão.
Não acho que o mundo esteja pior, acho que temos mais tempo livre e vivemos mais, por isso sabemos de tudo.
Muitos alunos perguntam por que a maioria dos autores estudados nas salas de aula são pessimistas. Não existem autores que foram otimistas?
A primeira resposta possível é que sim, existem, mas são todos fracos e passam como o vento. Outra é que o pessimismo é mais realista, já que, para além da política e da economia, o simples fato de que os seres vivos comem uns aos outros já seria suficiente para pôr em cheque qualquer tipo de otimismo mais profundo.
Por último, o otimismo sempre parece meio brega. Combina com o Carnaval e passa como o efeito do álcool. O pessimismo, por sua vez, dá à pessoa um certo tom de profundidade. A melancolia sempre foi chique. Só gente superficial é otimista.
Mas existe uma forma de pessimismo que acho muito mais interessante: o pessimismo teológico. O mundo teria sido criado por um Deus mau. Ou a natureza é cruel, como diria Brás Cubas.
Esta forma de pessimismo cosmológico tem uma referência importante, mas não única, nos escritos conhecidos como "Manuscritos de Nag Hammadí", lugar no Egito onde foram encontrados em meados do século 20.
Muita gente se refere a esses textos como "Evangelhos Gnósticos", encontrados em rolos de papiros, mais tarde denominados "códex" -- o primeiro e mais famoso é conhecido como "Códex Jung", por conta do grande investigador da alma humana ter tido envolvimento direto nos estudos desse material.
O termo "gnóstico" significa, basicamente, "aquele que conhece" porque teve a gnose (conhecimento revelado), e no cristianismo gnóstico (primeiros cinco séculos da Era Cristã, mais ou menos) é ele o único que ouve a voz do salvador, Cristo. Mas o que o gnóstico conhece?
Em um desses evangelhos, o "Evangelho da Verdade", considerado um fruto da chamada Escola Valenciana -- Valentinus teria sido um importante líder gnóstico do século 2º da Era Cristã que deixou discípulos, um deles teria escrito este texto --, a criação é fruto do desejo desmedido de Sofia, uma das figuras do panteão do "Agnostos Theos" (o "Deus desconhecido", que não criou o universo e do qual veio Jesus, o Salvador).
Sofia, querendo conhecer este Deus silencioso, gerou uma "crise" no Pleroma (espécie de Olimpo dos gnósticos) porque ninguém pode conhecer esse Deus "separé", como diz a estudiosa francesa Simone Pétrement.
Sofia se desespera porque fez isso e, de sua angústia, nasce seu filho, o Demiurgo -um idiota cego e orgulhoso que quer ser Deus e, para isso, cria o mundo como seu brinquedo de torturas e a humanidade, para se divertir. Um Deus à altura de Brás Cubas.
Ao chorar por ver o que fez, Sofia derrama lágrimas sobre o mundo. Essas lágrimas, feitas da mesma matéria do Deus desconhecido (tudo no Pleroma, inclusive Sofia, é feito da mesma matéria do "Agnostos Theos"), caem em alguns homens e mulheres. Essas lágrimas virarão as centelhas do Deus desconhecido no mundo, que serão despertadas pela fala de Cristo.
Ao despertar, esses autênticos filhos do Deus desconhecido tornam-se "aqueles que sabem", os gnósticos. Sabem que não há esperança no mundo porque ele foi criado por um Deus idiota, orgulhoso e cruel. Portanto, resta apenas o silêncio e a fuga.
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*Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta