Os fundamentalistas 07/03/2015
- Demétrio Magnoli*
"Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco".
Joaquim Levy deveria tomar emprestada a frase de William Blake para sintetizar suas relações com o antecessor, Guido Mantega.
Os evangelhos da Igreja da Expansão Fiscal, de Mantega, dizem que o desenvolvimento nasce do endividamento público.
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Já os evangelhos da Igreja da Ortodoxia Fiscal, de Levy, asseguram que, pelo contrário, o desenvolvimento emana do equilíbrio das contas públicas.
Dilma Rousseff, a exterminadora do futuro, trocou um fundamentalismo por outro, complementar.
Desenvolvimento é aumento da produtividade econômica sistêmica, ou seja, da capacidade social de produzir riqueza.
A política fiscal não passa de um instrumento, entre outros, para sustentar (ou sabotar) o incremento da produtividade.
Os arautos da Igreja da Expansão Fiscal entregam-se à propaganda enganosa quando sustentam que o governo adotou a política econômica dos candidatos da oposição nas eleições presidenciais.
Os conselheiros econômicos de Aécio e de Marina propunham uma série de reformas destinadas a reativar o crescimento pela ponta dos investimentos.
Um ajuste fiscal escalonado ao longo do tempo funcionaria apenas como amparo da nova política econômica.
Nada a ver com a recessão inútil engendrada pelo governo.
No mundo invertido do lulopetismo, o governo fez política fiscal expansionista na etapa ascendente do ciclo (2010) e, como consequência, faz política fiscal contracionista na etapa cadente do ciclo (2015).
O ajuste fiscal, na hora errada, tornou-se compulsório -- mas, mesmo assim, não seria preciso praticar a cirurgia sem assepsia.
Dilma gosta da palavra "rudimentar", empregada há pouco por Levy. É o melhor qualificativo para as políticas econômicas simétricas de seus dois mandatos.
Levy age como um secretário do Tesouro, não um ministro da Fazenda.
Sob a sua batuta, cortes de despesas e escorchantes aumentos de tributos e preços administrados converteram-se em finalidades de política econômica.
A recessão provocada por sua insensata ofensiva fiscalista reduzirá as receitas e, no fim, o "sucesso" do ajuste derivará essencialmente da alta da inflação.
A receita da Igreja da Ortodoxia Fiscal não serve ao país, mas amolda-se ao projeto eleitoral de Lula, que prevê a reativação da farra fiscal "manteguiana" nos anos derradeiros de Dilma 2.
As vacas sagradas do lulopetismo não saíram do pasto.
O governo suga o sangue dos outros, mas não sinaliza um corte radical nos cargos de nomeação política.
A Petrobras venderá patrimônio na bacia das almas, mas aferra-se ao inviável regime de partilha.
Enquanto a Fazenda fecha a torneira do déficit público, o BNDES prepara-se para reabrir a torneira da dívida pública, salvando a Sete Brasil e as empreiteiras do "petrolão".
O sumo pontífice da austeridade fiscal é um Gilberto Kassab das finanças: o pistoleiro liberal contratado pelo estatismo populista.
O motor da economia são as expectativas.
Um ajuste fiscal inscrito numa política de reformas de longo prazo poderia reconstruir a confiança e estimular investimentos.
O ajuste pró-cíclico de Levy, uma bandeira cravada na superfície lunar do "dilmismo", só aprofundará a recessão inevitável.
A maioria da bancada parlamentar petista diz que votará contra os pacotes do ajuste.
O Congresso deveria, por bons motivos, fazer o que, por maus motivos, os petistas simulam que farão.
"Se os economistas conseguirem se fazer vistos como pessoas humildes e competentes, no nível dos dentistas, isso seria esplêndido!", escreveu John Maynard Keynes em 1930.
Ele queria dizer que a política econômica não existe para confirmar, ou desmentir, os dogmas dos economistas, mas para afastar-nos da miséria, da carência e do desespero.
Mantega e Levy, sacerdotes de igrejas vizinhas, não tratam cáries: arrancam dentes.
...
*Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista em política internacional.