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De Última! Só lendo para acreditar

O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

O golpe do golpe
24/03/2015 - Marcos Augusto Gonçalves - Folha de S.Paulo

Na sequência das denúncias sobre a distribuição de dinheiro para políticos e partidos da base do governo Lula, no episódio que ficou conhecido como "mensalão", o PT e seus aliados passaram a alardear a versão de que estaria em curso uma tentativa de "golpe" no país, orquestrada pela direita com apoio da mídia, dos setores neoliberais e do imperialismo norte-americano.

A sublevação reacionária, como se sabe, não aconteceu. Não houve pedido de impeachment, Lula foi reeleito e fez sua sucessora, que, por sua vez, chegou ao segundo mandato.

Agora, mais uma vez, o petismo volta a alardear a suposta ameaça golpista, desta vez diante das evidências de que setores do partido estão no centro de um gigantesco esquema de corrupção na maior empresa pública do país.


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Num contorcionismo histórico admirável, o agitprop do partido nos leva de volta ao mundo da Guerra Fria, da URSS, da revolução Cubana, da UDN, das Ligas Camponesas, e recoloca em cena as circunstâncias que culminaram com a derrubada de João Goulart pelos militares em 1964.

É ótimo, ainda mais tratando-se de uma jovem democracia latino-americana, que se reitere a defesa dos preceitos constitucionais e da normalidade institucional.

Melhor ainda que a esquerda, nem sempre disposta a defender a "democracia burguesa" (e quase sempre simpática à "ditadura do proletariado") mostre-se interessada em fazê-lo.

Ocorre que, apesar de manifestações isoladas de grupelhos antidemocráticos, não há condições objetivas para uma intervenção golpista no Brasil.

Não há sustentação social, militar e política para tanto, tampouco perspectivas de apoio internacional para uma aventura desse tipo. De zero a 10, a chance é zero.

O intuito dessa fantasmagoria paranoica não parece ser outro que desviar as atenções da profunda crise por que passam o PT e o governo federal.

O recurso de acenar com grandes ameaças "ex machina" em momentos de dificuldade de governantes é tão velho quanto a política.

A estratégia da campanha contra o "golpismo" é terraplanar o território, eliminar os relevos e estabelecer um ambiente de discussão política primário, perfeitamente maniqueísta, em que tudo se resume a dois lados, o bem contra o mal, a esquerda democrática contra a direita ditatorial, os defensores da Petrobras contra os vendilhões.

Postas as coisas dessa maneira, não há o que discutir.

Os indignados com a corrupção e os insatisfeitos com o PT e o governo já estão previamente desqualificados.

Mesmo concedendo que não sejam intencionalmente golpistas estão fazendo o jogo da direita autoritária.

E pouco importa se o próprio petismo aliou-se a defensores da ditadura, como Sarney e Collor.

Foi para o bem do povo.

Esse tipo de interdição do debate faz lembrar o período da ditadura militar, quando a esquerda tradicional rejeitava as críticas que se faziam aos países comunistas.

Denunciar a sistemática perseguição a intelectuais e homossexuais, por exemplo, em Cuba, na China e na URSS, era uma atitude equivocada.

Tratava-se, segundo os cardeais do PCB, PC do B e congêneres, de uma questão "secundária", a ser silenciada.

Levantá-la era fazer o jogo do imperialismo e da direita, ou seja, dos militares anticomunistas.

No mesmo sentido, trata-se agora de negar evidências e recalcar as críticas aos rumos da esquerda, que tem hoje no PT seu partido hegemônico -- como foi, em outros tempos, o "partidão".

À época de sua fundação, a sigla de Lula, que nasceu de uma associação do sindicalismo paulista com a Igreja Católica progressista, intelectuais e grupos socialistas, apresentava-se como representante de uma "esquerda moderna", em ruptura com o stalinismo e o populismo.

Todavia (como bem assinalou Demétrio Magnoli, em artigo para a Ilustríssima, no domingo), o PT mudou de rumo e passou, décadas depois, a encarnar um projeto neovarguista.

Do cuidado inicial com alianças que descaracterizassem sua proposta, uniu-se à velha esquerda antes criticada (caso do PC do B de Aldo Rebelo, um aparelho oportunista com palavrório nacional-popular mofado, que simpatiza com a Coreia do Norte e se compõe com o agronegócio) e, pior ainda, associou-se a uma direita lúmpen e corrupta em nome da "governabilidade".

Nesse movimento, a agenda moderna foi murchando. Questões como a preservação ambiental, a descriminalização das drogas, a legalização do aborto e a defesa dos direitos humanos e liberdades foram cedendo lugar a um desenfreado pragmatismo desenvolvimentista, ao loteamento do Estado, à busca do enriquecimento fácil, ao flerte com o capitalismo de Estado (China e/ou Geisel), à rendição às bancadas religiosas e à cumplicidade cínica com ditaduras e regimes autoritários.

Não quero incentivar ninguém a deixar de protestar contra golpistas, pelo contrário.

Mas convém reconhecer que a grande questão atual não reside na ameaça de um golpe militar com apoio da UDN, para derrubar a herança trabalhista de Vargas e a "ameaça comunista".

Isso aconteceu há 50 anos.

Para o país, o ponto é saber como -- e se -- o governo desastrado de Dilma Rousseff vai readquirir um mínimo de autoridade e bom senso, assumir seus equívocos, restabelecer a confiança na economia e encontrar uma saída para a crise que não destrua os progressos conquistados nas últimas décadas.

Para isso será preciso, como disse o jornalista João Carlos de Oliveira, num post nas redes sociais, voltar a fazer política e não pregação evangélica em defesa do indefensável.

Quanto ao PT, trata-se de parar de tapar o sol com a peneira, passar por um processo de autocrítica e tentar recuperar condições morais e políticas para redefinir uma agenda com vistas ao futuro.

A do passado já se exauriu.


  

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