A perfeição, segundo Widodo 02/05/2015
- Demétrio Magnoli*
"O resultado da segunda das execuções foi melhor, mais ordeiro e perfeito que o da primeira", disse o Advogado-Geral da Indonésia, Muhammad Prasetyo, comparando os fuzilamentos de abril com os de janeiro.
Nas ideias de ordem e perfeição encontram-se as razões filosóficas para condenar a pena de morte.
Mas o que está em curso na Indonésia é algo singular -- e ainda mais grave.
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Fuzila-se, no país, por conveniência política.
O governo brasileiro precisa entender isso para modular sua reação à execução de Rodrigo Gularte.
A defesa moral da pena de morte fundamenta-se no argumento de que é permissível matar sob certas circunstâncias, como a autodefesa e a guerra.
Contudo, a aplicação da pena capital equivale ao homicídio premeditado.
As leis de guerra distinguem a eliminação do soldado inimigo em batalha da execução de prisioneiros, que é proibida.
As leis civis circunscrevem a autodefesa a circunstâncias extremas, em que a integridade física do agente corre risco: matar um bandido dominado é crime.
A imoralidade essencial da pena de morte encontra-se no intervalo temporal entre crime e retribuição, preenchido por uma série de atos policiais, judiciários e administrativos que almejam produzir um desfecho "ordeiro e perfeito".
Doze anos atrás, Cuba executou três desesperados que, sem ferir ninguém, sequestraram uma embarcação para fugir da Ilha.
Na ocasião, sob o impacto da comoção internacional, o governo Lula murmurou um protesto genérico contra a pena de morte.
Agora, diante do cadáver de Gularte, o Itamaraty divulgou uma nota justamente indignada, proclamando "a disposição brasileira de levar adiante, nos organismos internacionais de direitos humanos, os esforços pela abolição da pena capital".
Nos dois casos, embora com dramáticas diferenças de tom, o Brasil dissipa a singularidade na generalidade, esterilizando a reação necessária.
Cuba, ontem, e a Indonésia, hoje, não apenas praticam homicídio, mas perpetram homicídios qualificados, violando o princípio da retribuição comensurável.
"Olho por olho": nas raras democracias em que ainda é aplicada, a pena capital pune atos hediondos de homicídio.
A execução de condenados pelo sequestro de uma lancha ou pelo tráfico de drogas inscreve-se numa categoria especial de barbárie: não é gesto imoral de retribuição, mas ato politicamente motivado que desafia os pilares do edifício dos direitos humanos.
O governo indonésio de Joko Widodo alega que fuzila em meio à "guerra às drogas", com a finalidade de proteger a sociedade nacional.
Nesse raciocínio hipócrita, os traficantes figuram como agentes da morte de indonésios inocentes.
Efetivamente, porém, o crime do traficante só se consuma por meio do livre consentimento do usuário, que paga para ter acesso ao objeto de seu desejo.
Ademais, o vício não requer nem mesmo a presença de um malévolo intermediário comercial: Gularte embrenhou-se no universo das drogas aos 13 anos, cheirando solvente.
Widodo joga xadrez no tabuleiro do engodo midiático e do populismo nacionalista.
Na mesma ilha carcerária de Nusa Kambangan, o palco da execução de traficantes, começam a ser libertados 300 terroristas que cumpriram sentenças brandas ligadas aos nove atentados jihadistas cometidos no país entre 2002 e 2009.
A "guerra às drogas" funciona como biombo para ocultar o fracasso no combate às redes de recrutamento estabelecidas na Indonésia pela Al Qaeda e pelo Estado Islâmico.
Nisso, há "ordem" e "perfeição" notáveis: os terroristas libertados são indonésios, mas quase todos os traficantes fuzilados são estrangeiros.
Dilma Rousseff decidiu responder a Widodo desfraldando o estandarte da abolição universal da pena de morte.
Por esse atalho moralista, salva a face de um governo indecente, que derrama o sangue de pobres diabos no altar sacrificial do orgulho patriótico.
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*Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, "Gota de Sangue - História do Pensamento Racial" e "O Leviatã Desafiado".