Democracia se exerce à luz do dia 13/06/2015
- Revista Época
Para alguns setores do Itamaraty, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se tornou um cidadão comum no Brasil ao deixar o poder, como é normal e razoável em países civilizados.
No mês passado, o repórter de ÉPOCA Filipe Coutinho requisitou, pela Lei de Acesso à Informação, documentos públicos relativos a negócios envolvendo a empreiteira Odebrecht.
São documentos que já deveriam estar disponíveis para consulta por qualquer pessoa.
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Pelos critérios legais, o prazo para atendimento é de 20 dias corridos, prorrogáveis por mais dez. Quando os dois prazos se esgotaram, o Itamaraty informou ao repórter que precisaria de mais dez dias úteis para atendê-lo.
A justificativa era que “a consolidação dos dados demandará trabalho adicional”.
Ontem, sexta, o jornal O Globo revelou a verdade: a documentação já estava pronta, mas um diplomata tentava manipular as regras para torná-la inacessível.
O Globo mostrou um documento no qual o diplomata João Pedro Costa toma por base reportagens de ÉPOCA relativas às ligações entre Lula e a Odebrecht e escreve a um superior:
“Estes documentos já seriam de livre acesso público”, diz. E complementa: “(...)o fato de o referido jornalista já ter produzido matérias sobre a empresa Odebrecht e um suposto envolvimento do ex-presidente Lula em seus negócios internacionais, muito agracederia a Vossa Excelência reavaliar a anexa coleção de documentos e determinar se há, ou não, necessidade de sua reclassificação para o grau de secreto.”
Pelo que se depreende do documento, um funcionário do Itamaraty queria driblar a lei com o intuito de preservar Lula.
A atitude demonstra que, pelo menos para uma facção de servidores, as atividades empresariais de Lula estão acima da transparência obrigatória devida pelo Itamaraty -- e por todo governo -- ao público que paga por seus serviços e salários.
É temerário para a democracia que um burocrata se sinta à vontade para driblar a lei mediante a simples possibilidade de dados públicos criarem constrangimento a um político.
Lula é um cidadão comum. Suas atividades privadas estão sujeitas ao escrutínio público porque seus passos como prestador de serviços da Odebrecht em viagens ao exterior contaram com o apoio da diplomacia brasileira.
Como ÉPOCA noticiou em reportagem de capa em maio deste ano, o Ministério Público Federal abriu investigação sobre tais viagens.
Não houve, até agora, abertura de inquérito -- mas, para o Ministério Público, Lula é suspeito de tráfico de influência internacional.
A Lei de Acesso à Informação é um avanço civilizatório.
Estabelece critérios para que o cidadão possa saber o que o governo, eleito com seus votos e sustentado por seus impostos, faz em seu nome.
Documentos são classificados de acordo com seu grau de sensibilidade e liberados em prazos definidos; os mais delicados, que tratam de questões de segurança nacional, ficam ocultos por mais tempo.
Uma reclassificação de documentos segue critérios e é feita por uma comissão.
É difícil imaginar que as viagens de Lula toquem em alguma questão de segurança nacional.
Funcionários do Itamaraty não podem, por critérios políticos pessoais, sugerir que a lei seja subvertida para preservar a imagem de quem quer que seja.
Muitas autoridades ainda não se acostumaram com a transparência que está no cerne da democracia.
O então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e hoje governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, classificou como secretos os acordos entre Brasil e Cuba para construção do Porto de Mariel -- outra obra da Odebrecht.
A desculpa é o sigilo empresarial, mas a atitude é no mínimo questionável.
No episódio revelado pelo Globo nesta semana, um representante do Itamaraty tentou decidir o que o público pode saber a respeito das relações entre Lula e a Odebrecht.
A censura oficial terminou com a Constituição de 1988.
Como disse a ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento das biografias, nesta semana, “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição”.
O filósofo italiano Norberto Bobbio descreveu a democracia como “o governo do poder público em público”.
Exercer a democracia à luz do dia é a tarefa dos órgãos de Estado.
Guardada a exceção da segurança nacional, atos realizados longe dos olhos e do escrutínio dos eleitores são, por definição, antidemocráticos.
Só seremos uma democracia de verdade quando nossos diplomatas e políticos incorporarem essa verdade simples.