Ecologia da libertação 20/06/2015
- Folha de S.Paulo
A encíclica "Laudato Si'" (Louvado Sejas) do papa Francisco foi recebida com júbilo por ambientalistas. Decerto viram nessa exortação pela natureza um aliado de peso para revitalizar a letárgica negociação internacional sobre o combate à mudança do clima.
O pontífice argentino, contudo, parece ter em vista mais os donos do poder, entre os quais não faltam os que cultuam valores religiosos, e os cristãos desatentos à doutrina teológica de que não se pode salvar a criatura (os homens) do pecado e da miséria sem salvar também a criação (a natureza).
Tudo está ligado, sublinha Francisco na encíclica. Agredir a natureza, como faz uma humanidade inebriada com a tecnologia, atenta contra a obra do Criador. Fechar os olhos para a mudança climática é pecado, em resumo.
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O papa junta sua voz à de outros líderes mundiais empenhados em fazer da conferência do clima de Paris, em dezembro, um sucesso.
O presidente francês, François Hollande, e a chanceler alemã, Angela Merkel, estão na dianteira do esforço para que se chegue a um acordo capaz de limitar o aquecimento global a 2°C até o fim do século.
A necessidade de enfrentar essa questão não se resume à dimensão moral privilegiada no documento pontifício.
Há razões pragmáticas de sobra para levá-la a sério.
Um aumento superior a 2°C da temperatura média da atmosfera terrestre traria mais eventos climáticos extremos, como enchentes, secas, tempestades e ondas de calor.
Tais alterações nos padrões climáticos não só levariam à perda de vidas mas também provocariam o desarranjo de todo o sistema de produção agropecuária e obrigariam o setor de infraestrutura a consumir verdadeiras fortunas para se adaptar à nova realidade.
Francisco está certo em indicar que esse processo punirá desproporcionalmente os mais pobres e menos responsáveis pela situação.
Para o papa, os países pobres devem desenvolver formas mais limpas de produzir energia, mas precisam contar com a ajuda de quem cresceu muito à custa da atual poluição do planeta.
A ênfase moral da encíclica lhe confere por vezes um tom anticapitalista.
O papa, por exemplo, descarta a utilidade de mercados de créditos de carbono (onde se comercializam permissões para emitir gases do efeito estufa), por alimentarem a noção de crescimento indefinido da economia.
Defende, ademais, um utópico "decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes".
Não faltam problemas no mundo, e um aquecimento anormal da atmosfera representa uma das principais ameaças.
É bom que Francisco a inclua entre suas prioridades midiáticas, mas condicionar a solução ao retorno a uma comunhão mística com a natureza implica riscos para um eventual consenso em Paris que até o mais fervoroso ambientalista reconheceria.