Guerreiro do povo brasileiro 08/08/2015
- Demétrio Magnoli*
Vão longe os tempos do braço erguido e do punho fechado. A novidade da prisão de José Dirceu encontra-se na esfera das narrativas.
Mesmo para o PT, o "preso político" do mensalão reduziu-se a um político preso.
A lacônica nota partidária assinada por Rui Falcão sequer menciona seu nome.
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Na declaração agourenta do ministro Ricardo Berzoini, um homem de Lula, "cabe aos investigados tomarem as providências que julgarem necessárias para se defenderem perante a Justiça".
O celebrado "guerreiro do povo brasileiro" não perdeu apenas os andrajos de liberdade pendurados no mancebo da prisão domiciliar: foi condenado por seu partido ao degredo político.
É uma forma de adiar a reflexão inevitável sobre as fontes ideológicas do apodrecimento ético do PT.
O PT traçou uma linha na areia separando a "corrupção pela causa", virtuosa, da "corrupção pelo vil metal", pecaminosa.
Corrupção virtuosa: no mensalão, intelectuais petistas produziram doutos textos consagrados à defesa da apropriação partidária de recursos públicos, e a relativa pobreza de Genoino tornou-se símbolo e estandarte.
Corrupção pecaminosa: Dirceu, indicam as provas oferecidas pelos delatores, usou sua influência no governo para constituir patrimônio pessoal.
O guerreiro caído cruzou a linha proibida. Seu degredo é uma desesperada tentativa de perenizar a fronteira que se apaga sob ação do vento.
Não existe pecado do lado de cá do Equador.
Se o país se divide entre Povo e Elite, e se o Partido é a ferramenta da emancipação popular de um jugo de 500 anos, então a "corrupção pela causa" não é corrupção, mas um expediente legítimo na jornada libertadora.
A fórmula inflexível, refletida nos punhos cerrados do mensalão, tem suas próprias implicações.
É em nome dela que Dirceu experimenta a condenação mais implacável.
Numa ordem unida à qual só escapam cortesãos inúteis e vozes periféricas de aluguel, o Partido imprime-lhe na fronte o estigma do traidor.
"Bode expiatório", disse seu advogado, numa referência aberta a interpretação.
Dirceu é Dirceu, a segunda face do PT, não um Duque qualquer, um Paulinho Land Rover ou um Vargas que só era André.
Dobrando-se ao vil metal, o guerreiro traidor remexe a areia, desmarca um limite, desfaz uma certeza.
Se até ele transitou de uma corrupção à outra, como separá-las nitidamente, sanitizando a primeira e satanizando a segunda?
O degredo silencioso de Dirceu, que equivale a uma gritaria, destina-se a abafar a pergunta incômoda.
Os juízes do Partido temem menos a hipótese improvável de uma delação premiada do guerreiro traidor que a exposição pública das conexões entre a corrupção virtuosa e a corrupção pecaminosa.
A linha divisória riscada pelo PT reflete uma lógica religiosa, típica dos partidos autoritários.
A corrupção virtuosa é aquela que serve à finalidade transcendente de salvação do Povo; a pecaminosa, pelo contrário, serve ao objetivo terreno de acumulação individual de bens materiais.
Na política democrática, contudo, a oposição relevante é entre o público e o privado, não entre a salvação coletiva e o enriquecimento pessoal.
Segundo essa lógica, cujo critério são os meios, o guerreiro não caiu sozinho.
Revisito as fotografias do líder estudantil preso, com centenas de outros, no Congresso da UNE de Ibiúna, em 1968, e de sua partida para o exílio, na base aérea do Galeão, com 12 outros, em 1969.
Vistas da torre de observação do presente, elas têm algo de profundamente melancólico: os sinais de um fracasso coletivo.
Mas, na história que se encerra, há também a prova de um teorema: a "corrupção virtuosa" conduz, inelutavelmente, à "corrupção pecaminosa".
O PT não deveria renegar seu guerreiro caído, nem defendê-lo, mas reavaliar a si mesmo no espelho de sua trajetória.
Para nunca mais cerrar o punho contra as instituições da democracia.
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Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, "Gota de Sangue - História do Pensamento Racial" e "O Leviatã Desafiado".