Os sem-aldeia, uma história de abandono à beira da estrada 04/06/2006
- Ricardo Brandt -- O Estado de S. Paulo
Os cerca de 180 índios da primeira aldeia guarani-caiová homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Mato Grosso do Sul, em 2005, vivem desde dezembro acampados nas margens da Rodovia MS-384, que liga as cidades de Antônio João e Bela Vista. Eles foram expulsos da aldeia quando o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou sua regularização, mesmo depois da assinatura do presidente.
Hoje, convivem com o medo da violência, decorrente do conflito pela terra com os fazendeiros, o risco de atropelamentos e a poeira deixada pelos mais de 300 caminhões que passam dia e noite pelo local.
Denominada aldeia de Nhanderu Marangatu, a comunidade é o mais emblemático exemplo de como o governo Lula tem tratado a questão indígena em Mato Grosso do Sul: sem política fundiária efetiva, com mais demarcações, sem soluções efetivas para os conflitos entre fazendeiros e índios por terras ou uma ação que reduza os assassinato decorrentes desses conflitos. Além da Nhanderu Marangatu, há no Estado pelo menos nove comunidades indígenas que vivem em situação de conflito pela propriedade da terra.
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Mato Grosso do Sul lidera todos os ranking de problemas envolvendo índios. Para os especialistas, a violência cresce à medida que não se resolve o problema de fundo, que é a falta de terras e o confinamento a que os índios ficam sujeitos, desestruturando a organização social das antigas tribos e sua capacidade de subsistência.
Segundo estudo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgado semana passada, Mato Grosso do Sul é o Estado com maior número de mortes de índios. No ano passado, 29 dos 43 assassinatos de indígenas ocorreram lá - e na maioria eram guarani-caiovás. Em 2003, foram 13 do total de 42 mortos.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) contesta os dados. Alega que são distorcidos, pois incluem todas as mortes violentas de índios, inclusive as cometidas entre eles. ¨Tentam descaracterizar a gravidade do problema. As instituições não deveriam ficar tentando tapar o sol com a peneira. A Funai deveria se envolver mais com a questão fundiária¨, atacou o coordenador do Cimi em Mato Grosso do Sul, Egon Heck.
Guarani-caiovás são os mais atingidos por conflitos. Em Mato Grosso dos Sul há 56 mil índios vivendo em pequenos espaços de terra, sendo que 37 mil são guarani-caiovás. Para a antropóloga da PUC de São Paulo Lucia Helena Rangel, coordenadora do estudo do Cimi, até as mortes decorrentes de problemas das aldeias (como brigas e suicídios) são ligadas ao maior número de conflitos pela terra.
A afirmativa tem respaldo no estudo. Dos 32 conflitos de 2005 envolvendo índios e a questão fundiária, pouco mais que a metade ocorreu em Mato Grosso do Sul. Em 2004, 28 dos 41 conflitos registrados foram no Estado. Em 2003,o quadro foi ainda pior: 26 casos no País, sendo 23 em Mato Grosso do Sul.
¨Estamos vivendo numa situação limite¨, disse o antropólogo Antonio Brand, coordenador do Grupo Caiová Guarani da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande. Para ele, os conflitos de terra no Estado são um barril de pólvora pronto para explodir. Lucia Helena vai além: ¨Um verdadeiro genocídio parece estar em curso em Mato Grosso do Sul.¨
MORTE NO NATAL
Não faltam exemplos de violência. Na véspera do Natal passado, os guarani-caiovás da Nhanderu Marangatu já haviam sido expulsos da aldeia e estavam acampados na beira da estrada. Por volta das 13 horas de 24 de dezembro, a comunidade preparava-se para um churrasco quando ouviu tiros. O índio Dorvalino Rocha foi morto na entrada da Fazenda Fronteira, por um capataz contratado pelos fazendeiros da área. ¨Nós fizemos o churrasco aqui (apontando um buraco cavado no chão de terra), enquanto o corpo estava sendo velado logo ali¨, conta Hamilton Lopes, de 49 anos, um dos líderes da aldeia.
O caso, que ainda causa preocupação aos índios da Nhanderu Marangatu, é apenas mais um número de uma estatística que aponta a falta de uma ação mais eficiente do governo para reduzir as mortes no campo.
¨E as políticas de assistência só agravam o problema. Imediatamente resolvem, mas a médio prazo provocam estragos¨, argumenta Antonio Brand. ¨Ao serem obrigados a viver com cestas básicas durante quatro anos, fora de suas terras, é óbvio que a auto-estima vai sendo destruída. E, ao não sinalizar qualquer perspectiva de solução do problema, você desestrutura o grupo. Eu penso que o governo não está atento a isso e a classe política não tem a mínima preocupação com o tema.¨
De 1998 para cá a comunidade Nhanderu Marangatu diminuiu. Eram mais de 700 índios em 1998, quando o grupo decidiu voltar para suas terras na região de Serro Marangatu, em Antônio João. Hoje eles não são mais de 400, que ficam espalhados pela região. As crianças quase não têm lugar para brincar, nem os pais têm terra para produzir a mandioca ou caçar.
A política assistencialista atacada pelo antropólogo tem sido a única frente de atuação do governo para controlar os conflitos com índios e casos de suicídio, mortalidade infantil, alcoolismo e uso de drogas que tomaram a maioria das 30 aldeias do Estado. Em 2005 foi demarcada apenas a aldeia Marangatu.
¨Pela política que o governo adota, a única perspectiva é de que essa violência vá crescer muito. Porque ela vem se agravando, na medida em que o processo de confinamento aumenta e as condições de vida vão se deteriorando. A única forma de se superar isso é ampliar os territórios¨, diz Brand. Ele reconhece que houve aumento de investimentos do governo Lula, porém acha insuficiente. ¨Houve um investimento maior, mas as demarcações pararam. Não adianta, tem que acelerar o processo de demarcação.¨
Enquanto isso, o clima de tensão entre índios e fazendeiros cresce no sul do Estado. Os cerca de 180 índios da Nhanderu Marangatu ameaçam deixar a beira da estrada e voltar para suas terras para forçar, mais uma vez, uma posição do governo. ¨Não vamos desistir de nossa terra. Agüentamos até agora, mas nossas famílias já não podem mais sobreviver nessas condições¨, conta Lopes.