Despenalizar, descriminalizar 21/08/2015
- Marcelo Coelho - Folha de S.Paulo
Num voto de mais de duas horas, que mencionou até a constitucionalidade de uma lei sobre abertura de farmácias na Baviera em 1958, o ministro Gilmar Mendes defendeu ontem, no STF, teses liberais no "tormentoso debate" sobre a posse de drogas para uso pessoal.
Começou refutando uma argumentação levantada na véspera pelo advogado David Azevedo. Para aquele representante da Associação Paulista pelo Desenvolvimento da Medicina, a lei atual já não trata o portador de drogas como criminoso, não havendo por que contestá-la.
Nada disso, afirmou Gilmar Mendes. De fato, a legislação não quer que o usuário seja preso –"despenaliza" a conduta, esse o termo técnico. Só que continua criminalizando.
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As medidas educativas e preventivas que constam da lei 11.343 estão incluídas numa seção intitulada "dos crimes e das penas".
Não se pode pressupor, continuou Gilmar Mendes, que os legisladores tenham simplesmente se equivocado quando optaram por essa rotulação. O próprio STF, em julgamento de 2007, já tinha decidido sobre esse ponto.
Mas a questão agora é saber se, pela Constituição, a posse de drogas para uso pessoal pode ser tratada como crime.
Se o uso é pessoal, o Estado tem direito de interferir sobre a liberdade de escolha do indivíduo?
Às vezes, admitiu o ministro, a lei pode punir condutas que não têm efeito concreto, imediato, sobre a comunidade. É quando se fala em "perigo abstrato".
Em tese (o exemplo é meu), poderia incluir-se nessa categoria o ato de guardar uma arma de fogo dentro de casa -- ainda que apenas para "uso pessoal" de um aspirante a suicida.
O problema é que criminalizar a posse de drogas termina sendo incoerente, disse Gilmar, com os próprios fins da legislação. Quer-se ajudar o usuário, promover sua reinserção social.
Na prática, ocorre o contrário. O portador de drogas é estigmatizado. Na grande maioria dos casos -- o ministro citou estatísticas do Rio e de São Paulo --, quem é flagrado com pequena quantidade de drogas pela polícia é condenado como traficante.
Ao contrário de outros países, o Brasil não estabelece em lei a quantidade exata de substância que pode ser considerada como sendo para uso pessoal.
Jovens negros e pardos, sem antecedentes criminais e na maioria com trabalho, terminam sendo apanhados. Em geral, a polícia os surpreende andando sozinhos, ou seja, sem testemunha.
A palavra do policial -- "longe de mim duvidar dela", ressalvou Gilmar -- termina sendo decisiva para as condenações, que ocorrem na vasta maioria dos casos.
Não se trata de legalizar. Mas o combate às drogas pode ser muito mais efetivo sem que passe pelo caminho da polícia e da legislação penal. Não foi preciso, lembrou Mendes, criminalizar o cigarro para diminuir o tabagismo.
Na experiência de cerca de 20 países, ademais, o consumo de drogas não aumentou quando a lei foi abrandada.
O que diminuiu (Mendes enfatizou o caso português) foi a vergonha de procurar tratamento.
As medidas contra a posse de drogas são inconstitucionais, concluiu o relator do caso, porque atingem "em grau máximo, e sem necessidade", o direito dos indivíduos à intimidade, à honra e à liberdade pessoal.
Com os elogios de praxe, Luiz Facchin, o ministro a votar em seguida, pediu vistas do processo.