A história que a China conta 19/09/2015
- Demétrio Magnoli*
7% ou 3%? Depois da queda abrupta do mercado acionário, o governo chinês garante que o PIB da segunda maior economia do mundo ainda crescerá 7%, em linha com a hipótese de "aterrissagem suave".
Os céticos, cada vez mais numerosos, ignoram os desacreditados índices oficiais, apontando a anemia de indicadores físicos, como o consumo de eletricidade e o movimento ferroviário de carga, que sinalizariam expansão anual de apenas 3%, numa "aterrissagem forçada".
A verdade estatística está, provavelmente, no meio termo.
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Já a verdade histórica parece nítida: encerrou-se o ciclo da "globalização chinesa". É tempo de aposentar uma lenda.
A lenda diz que o sucesso da China derivou de um modelo assentado na centralização de decisões, no dirigismo estatal, no gerenciamento econômico heterodoxo e no financiamento subsidiado da projeção externa das empresas do país.
Difundida no Brasil pelos arautos do capitalismo de Estado e do neonacionalismo, ela é menos uma análise da inserção chinesa na economia mundial que uma plataforma de combate ideológico.
Suas mensagens:
a) o "modelo chinês" serviria como fonte de inspiração para o Brasil reformar-se a si mesmo;
b) a cooperação estratégica da China com os "países emergentes" contrabalançaria a polaridade geopolítica exercida pelos EUA e pela União Europeia.
Tudo isso tinha uma película de verossimilhança na hora do crash financeiro global de 2008-2010, mas não resiste à prova da "aterrissagem" chinesa.
O "modelo chinês" nunca foi um "modelo", mas unicamente a forma assumida pela economia da China na etapa inicial de sua transição do socialismo para o capitalismo.
Nessa etapa, o dirigismo estatal propiciou o crescimento econômico acelerado porque o país dispunha de reservas abundantes de força de trabalho barata e os mercados externos eram capazes de absorver, na forma de importações, a poupança compulsória da população chinesa.
Mas tais condições desapareceram.
A China em "aterrissagem" só pode prosseguir seu desenvolvimento pela ativação do mercado interno -o que exige a desmontagem das engrenagens do capitalismo de Estado.
A passagem de uma economia de investimento para uma economia de mercado solicita reformas radicais, que se estendem do direito de propriedade aos direitos civis e políticos, passando por regras capazes de assegurar a concorrência.
Os dirigentes chineses resistem às reformas mais profundas, que provocariam fissuras insanáveis no sistema político totalitário.
Mesmo eles, porém, reconhecem oficialmente o imperativo de liberar as forças de mercado da teia asfixiante de controles estatais.
O capitalismo de Estado não é o futuro, mas o passado da China -- eis uma conclusão inevitável que escapa aos ideólogos brasileiros do "modelo chinês".
A tese da "aliança estratégica" antiamericana nunca passou de uma bizarra utopia.
O grupo dos Brics, celebrado pelo governo brasileiro como polo geopolítico alternativo, reúne países com interesses fundamentais distintos.
Índia e China são potências nucleares rivais.
China e EUA são parceiros estratégicos no universo das finanças globais.
O Banco dos Brics, exibido no Brasil como instrumento de revolução da ordem financeira global, é um elemento periférico no esforço de internacionalização da economia chinesa.
A "aterrissagem" da China, suave ou forçada, evidencia a dimensão da fraude analítica.
Os "países emergentes" cresceram à sombra da "globalização chinesa", empurrados pelo vento de cauda da explosão das cotações das commodities e por fluxos inéditos de investimentos estrangeiros.
Hoje, todos eles sofrem, em graus diferentes, os impactos da reversão do ciclo econômico -- e, enquanto a China desacelera, os capitais escorrem na direção dos EUA.
"Modelo chinês"?
O admirável mundo novo cantado pelo lulopetismo era só uma metamorfose do mundo velho.
...
*Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, "Gota de Sangue - História do Pensamento Racial" e "O Leviatã Desafiado".