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comTEXTO : Acerto de Contas

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31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
18/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CCXV

O ano de 1981 entrava na segunda metade...

...A questão dos gringos tornara-se assunto comum entre banhistas e fregueses do Caravelas, extrapolara o hermético círculo das elites...

...A cidade presenciava a caça do gato ao rato que, acuado no paredão da lei, prestes a sucumbir ao pulo mortal do felino, aguardava um milagre que não veio....

...Um processo confidencial corria Ministério da Justiça e incluía desde a rota do navio branco, àquela altura vendido como sucata a uma siderúrgica de Chicago, aos mais picantes detalhes de cada passo dado por cada gringo em Natal...

...Exatamente nos dias de maior tensão, uma trágica ocorrência veio piorar a situação....

...O dentista gay americano, que morava só numa mansão à beira-mar de Ponta Negra amanheceu morto, cheio de facadas. Correu a versão de que um hippie de 20 anos, que acampara defronte à casa e que, a preço de dólar, tornara-se íntimo da vítima, seria o assassino, em um crime que acordou a cidade nas ondas policiais do rádio...

...Isabel, que ouvira a notícia enquanto se banhava, entrou no quarto coberta com a toalha, incrédula, surpreendida pelo inesperado acontecimento...

...¨Quem era o gringo morto?¨...

...¨O rádio não deu o nome, mas parece que era um dentista¨, e depois, exclamou...

...¨Caramba! Ahora, si, se hedieran!¨...

...Levado pelo instinto de repórter, pretendia observar de perto os efeitos do crime no comportamento da praia...

...Assim que desceu a escada do Caravelas, no momento em que pôs o pé no bar, teve uma surpresa. Cessara a algazarra das pessoas e todos os rostos se viraram para ele num sentimento mais de curiosidade do que o costumeiro mal-estar...

...Vislumbrara a figura de Rodrigues e mais três homens que palestravam em conversa baixa, as cabeças amontoadas no centro da mesa, já na terceira ou quarta garrafa de cerveja...

...Sem dúvida, eram policiais que o aguardavam e conversavam entre si...

...Subitamente o frio sentido quando achou o bilhete no muro voltou a percorrer-lhe a espinha, de cima abaixo...

...De chofre vieram-lhe lembranças ocultas em pontos esquecidos da memória, dos tempos duros da repressão...

...Os freqüentadores habituais não se expressavam em gestos largos, como de costume, às vezes aos gritos, e na tentativa de captar do silêncio o que escapava daquela tensa conferência, quase emudeciam, se amontoando em volta para bisbilhotar e tentar ouvir...

...Ávidas de curiosidade pela presença que alterou o metabolismo da praia, o que falavam, pois sabiam que aqueles homens eram tiras, olhavam-nos com desconfiança...

...Rodrigues ofereceu-lhe uma cadeira e um tira alto, de cabelos compridos negros, e ombros largos, salientes, de mãos fortes, peludas, e um olhar claro, provocante, frio e sombrio por trás de óculos escuros, apresentou-se...

...¨Prazer, Santiago. Sou do SPMAF, Serviço de Polícia Marítima Aérea e de Fronteira, do DPF¨...

...Com o cenho carregado, olhando-o meio de banda, por baixo de loiras sobrancelhas, muito peludas, à primeira vista parecia um tipo caricato, grotesco e arrevesado, dando a impressão de ser mestre na arte de intimidar. Com um risinho sarcástico no rosto, fez questão de demonstrar rudeza, antipatia mútua e logo compartilhada. Não correspondeu ao aperto de mão...

...¨Muito prazer, Chico Lima, de Brasília¨, disse o que parecia chefe, cumprimentando-o com caloroso aperto de mão...

...Não gravou o nome do terceiro cana de nariz arrebitado, de desagradável e sisuda fisionomia; pareceu ter ouvido-o dizer que se chamava Siqueira...

...Um quarto tira, baixinho, mirrado, nada disse, andava de um lado ao outro de short e camiseta regata, brincando sem alarde com as crianças do bar. Sem perder nada do que se passava, vigiava tudo e fingia desconhecer os parceiros...

...O fato de não perceber neles nenhum gesto digno de registro hostil ou amigo em si já representava alguma coisa.



CAPÍTULO CCXVI

Discreto, rechonchudo, com vasta barba negra e óculos escuros, o delegado procurou transmitir tranqüilidade ao sorrir quando o disse para nada temer, pois se tratava de apenas um papo informal, uma troca de idéias. Sempre amável, Rodrigues iniciou a conversa...

...¨Um dia você me perguntou dos gringos, está lembrado? E eu lhe disse que não sabia de gringo nenhum. Você deve ter lido nos jornais de hoje a notícia do gringo e eu trouxe estes meus parceiros para a gente trocar umas idéias... Podemos dispor de alguns minutos do seu tempo?¨...

...E Rodrigues contou sua parte na história...

...¨Sou lotado na DRE, Delegacia de Repressão a Entorpecentes, e meu negócio é prender maconheiros, se bem que esse não seja o maior problema, aqui, em Natal, porque está na cultura do povo. Pedi transferência para cá porque queria ficar um tempo sossegado com minha família num lugar agradável, mas aqui apareceu um problema bem mais grave e muito mais sério, que a DRE nunca imaginou que pudesse acontecer numa cidade deste porte, nesta região, a cocaína. Detectamos conexões que desembocam aqui, em Natal, e, sem nenhuma ocorrência registrada, como iríamos saber do pó, em Natal? Esse era meu serviço¨, disse e continuou, ¨mas acontece que na outra área, aquela que você perguntou outro dia, tinha coisa e eu não sabia, juro que não sabia, porque não me meto mais nos assuntos da ordem política, de estrangeiros, nada. Uns parceiros investigavam os americanos, sim, por ordens de Brasília, coisa de cima. Meu lance era o pó. Também cerquei os gringos, suspeitava de uns, exatamente dos ricos, moradores de Ponta Negra. Meu lance era só este. Agora, meus parceiros querem conversar com você. A sugestão foi minha, e quer saber por quê? Ora, você passa as manhãs enfurnado neste bar e quem sabe, possa ter conhecido o hippie suspeito¨...

...¨Ele viveu uns tempos por aqui, mas já faz algum tempo que não aparece¨, respondeu, para encurtar o assunto, ¨e o que li no jornal não corresponde à verdade, o hippie não poderia matar aquele gringo enorme, era um menino que viveu por aqui, numa barraca esfarrapada, descosida dos lados, um artesão comum que fazia jóias de metal barato. E um hippie jamais entraria nessa de matar e roubar. Acho que nem sabia dirigir, e o jornal disse que ele fugiu e capotou o carro. Invenção, pura invenção. Essa história tem algo de errado e se o que vocês querem é opinião, a minha é esta. Se é informação, não sei como ajudar¨...

...Por instantes, por enquanto, a questão dos gringos fora posta de lado...

...Cismado, Santiago usava os conhecimentos de tira para analisar-lhe os menores gestos, coisa própria de tira...

...¨O lance é muito simples, meu chapa. Estou nessa missão a serviço da delegacia de estrangeiros e fronteiras, marítima e aérea. Na realidade sou Dops, da Delegacia de Ordem Política e Social. Leio tudo, acompanho tudo, conheço e li mais livros do que qualquer um nesta mesa¨, disse-o com um ar maldoso, observando as suas reações e ele, embora consciente da encenação, subitamente inibido pelo tom do policial, apenas esboçou um leve sorriso, pois, sabendo ao que Santiago se referia, imaginava aonde ele queria chegar.



CAPÍTULO CCXVII

Enfático, sem nenhum tato, o inquisitivo policial prosseguiu...

...¨Natal é uma cidade perigosa, o único soviet do Brasil foi aqui, único no Brasil e de todo o Ocidente, antes de Cuba. Foi aqui que os comunas tomaram o poder, em 1935. Não importa se demorou quatro dias ou uma semana, mas, digamos assim, foi aqui, na sua cidade, que a subversão teve início e foi aqui o único lugar onde um governo de comunas exerceu o poder. Levaram couro no Rio e no Recife, mas aqui, não, a tentativa deu certo! Quer saber por quê? Porque a única cidade do Brasil onde os comunas tomaram o poder foi Natal, esta cidade, a sua cidade¨...

...Ameaçador, presunçoso, batendo o dedo na mesa, com sua natural prepotência, acrescentou... ...¨e eu saberei se tiver comuna envolvido nesta jogada¨...

...O sarcasmo na voz do tira fê-lo pensar...

...¨Será que esse idiota sabe que o levante de 35 não foi planejado nem financiado por Moscou, que foi um fracasso militar e político, exatamente por falta de planejamento e apoio, interno ou externo?...

...Encarando-o com olhar de cão farejador, uma frieza profissional, destruidora, de torturador bem treinado, com a intenção clara de constranger, Santiago dardejou como um disparo a tão esperada pergunta...

¨Você é comunista?¨...

...A ditadura fora expulsa da praia e no entanto, ali estava de volta, em Santiago que, humilhando-o à espera da resposta, tamborilava na mesa...

...¨Não sei¨, disse vagarosamente e já havendo dado conta de que teria que recorrer à audácia, olhou o tira frente a frente dada a resposta que lhe parecera a mais consentânea à pergunta, sorrindo, comparsa do próprio cinismo, para tornar fraca e diminuir a crescente pressão, decidiu usar apenas uma arma, o silêncio, pois sabia que só com a inércia poderia vencê-lo; entretanto, ansioso, querendo resolver o assunto, mudou a postura...

...¨O que você me diz dos americanos?¨...

...¨Estou por fora desse lance¨, respondeu o policial, sem piscar nem tirar os olhos de cima dele...

...Rodrigues interrompeu...

...¨Estão sob investigação, ordens de Brasília¨...

...¨Pode ser, parceiro¨, disse Santiago, ¨mas não interessa discutir aqui as ordens de Brasília¨...

...Olhando-o nos olhos, vagarosamente, impaciente, esfregando as mãos, entreabrindo os lábios, num sorriso duvidoso, inflexível, o tira provocou-o...

...¨Você acha que tem dedo de comuna nesse lance?¨ e ele, como se quisesse cortar a conversa, retrucou, seco...

...¨Vamos devagar, companheiro, sou repórter, não sou espião!¨...

...Pela surpresa que lhe provocara uma das palavras, o policial, olhando-o com expressão de escárnio, ergueu as sobrancelhas e esbravejou...

...¨Não disse?!? Viram do que ele me chamou?!? Companheiro! Só falta agora me chamar de camarada!¨...

...¨Calma, professor Santiago, calma¨, brincou Rodrigues, sorrindo, tocando-lhe o braço...

...¨Calma, companheiro!¨...

...¨Ah!, está vendo?¨, exclamou Santiago, ¨se eu lhe chamasse de camarada, o que você, que lutou em Xambioá contra eles, o que diria?¨...

...Voltando-se para o jornalista, insistiu...

...¨Nessa morte do gringo, tem ou não tem dedo de comuna? Em Brasília há quem diga que tem¨...

...¨Claro que não, porra!¨



CAPÍTULO CCXVIII

Com um olhar manso e toda a discrição possível, mordendo de quando em quando a ponta do charuto, acariciando a negra barba, pela primeira vez, em voz baixa, o delegado falou direto ao agente...

...¨Isto é só entre nós, okay? Estamos aqui pelo homicídio, professor Santiago, e nada mais¨...

...¨Tudo bem, entendi. Pode falar, delegado¨...

...¨Como está no boletim de ocorrência¨, prosseguiu o delegado, ¨o legista daqui, aliás, o único do quadro da polícia local, informou que o crime se deu por volta das 23 horas, mas por quê a Polícia Civil só foi comunicada no outro dia, 14 horas depois? Estranho, não? Nem nos informaram, mas Rodrigues, que já estava aqui, conduziu por conta própria investigações preliminares, compareceu ao local, examinou pistas, falou com a vizinhança, fez o roteiro de fuga do hippie até o capotamento do carro, depois levantou o que pôde, menos as testemunhas, afastadas por algum tipo de coação. E ele concorda com você. Elimina de saída o hippie da lista de suspeitos, não foi ele. Então, quem foi? E é aí é que gostaríamos de ouvi-lo. Rodrigues acha que foi uma overdose durante uma festa¨...

...E Rodrigues interrompeu o relato do delegado...

...¨Não estamos oficialmente no caso, entende? É um caso da alçada da Civil, local, e Natal não tem sequer delegacia de homicídios. E mais, não fomos requisitados, ou seja, não estamos aqui nem extra nem oficialmente, mas é como eu disse, é estranho que, exatamente no momento em que os gringos estão sob investigação federal, aconteça um crime e um deles esteja envolvido. Tudo se entrelaça, e, ao que parece, o hippie foi contratado para simular latrocínio. Deve ter recebido uma boa grana¨...

...E, para variar, Santiago interveio...

...¨O que se passa com estes gringos daqui é coisa da Casa Grande¨...

...¨Casa o quê?¨, perguntou, surpreso...

...Após uma risada breve e cínica, Santiago acendeu um cigarro e mudou de assunto...

...¨Você sabe mais do que demonstra, repórter. Não banque o esperto, abre o jogo, vai. Quer dizer que não sabe o que é Casa Grande? E Forte Apache, você também não sabe? Casa Grande, meu caro, é a inteligência, o SNI, um órgão maior e acima do Departamento¨...

...¨Posso fazer uma pergunta? O que vocês querem comigo?¨...

...¨É simples¨, respondeu Chico, ¨se aparecer, o hippie nos interessa, porque é a chave de todo o quebra-cabeças, não havia como ele matar o gringo, bem mais forte do que ele, e rolou muito pó, ele pifou e dissimularam um homicídio duplamente qualificado, doloso e intencional. Foi difícil para nós encontrar pistas ou provas que incriminassem alguém da festa, e sabe por quê? Porque quem armou a cena do crime conhecia os procedimentos de investigação policial. Tomou precauções, não deixou uma única impressão digital. O laudo necroscópico do legista diz que os ferimentos foram infringidos por seis tipos de facas diferentes e, no entanto, só acharam uma¨...



CAPÍTULO CCXIX

Um turbilhão de pensamentos o surpreendia, à medida que o desolado delegado prosseguia a narração dos estranhos fatos ocorridos em Ponta Negra...

...Tinham sido insuportáveis os últimos minutos! Conseguira relaxar um pouco a inibição, porém, queria sair dali, porque era impossível controlar o nervosismo...

...Queria sair dali, mas algo o tentava a falar dos gringos, de Samuel...

...Pôs-se a pensar se devia falar sobre o dentista assassinado, que vira no Liberté, bar no alto da balaustrada, o mais badalado na esquerda festiva, em companhia de um corpulento e louro petroleiro, vestindo camisa estampada de flores, folhagem amarelas, verdes, bem tropical...

...Não seria melhor fingir não saber nada?...

...¨Quantos enfermeiros e médicos estiveram naquela festa, hem?¨, perguntou Rodrigues...

...¨Já imaginou a barra pesada que seria o escândalo? Não iam querer misturar a questão da droga com problemas da ordem política¨...

E foi assim que Rodrigues se traiu, revelou-se conhecedor da operação e das razões que estavam levando norte-americanos a incômodo inusitado em toda a história brasileira...

...Sem conter a curiosidade, interrompendo o delegado, indagou sobre o tráfico de crianças...

...Tomado de evidente mal-estar, soltando um suspiro, sombrio, o agente Santiago perguntou...

...¨Como você soube disso, jornalista?¨...

...No rosto amadurecido de Rodrigues passou uma onda de emoção e ele pediu calma, porém, de forma grosseira e leviana, Santiago insistia...

...¨Não disse! Aqui tem dedo de comuna!¨...

...Chateado com tão incômoda e insistente rispidez, não agüentando, exclamou...

...¨Por favor! Agora, chega! Porra! Já lidei com pessoas como vocês antes. Conversamos como inimigos?¨...

...Fincando os cotovelos na mesa perguntou se não poderiam conversar como cavalheiros...

...¨Como assim?¨, indagou Santiago, grosseiramente, com as grossas sobrancelhas arqueadas...

...¨Ora, o senhor é policial, e policial é o mesmo que detetive, não é?¨...

...Pela primeira vez, adotara o tratamento respeitoso de senhor...

¨Sim, mais ou menos, é a mesma coisa. Por que? O que você quer dizer?¨...

...¨Quero dizer que detetive vem da palavra inglesa detective, que detecta. Então, o senhor não acha melhor dizer logo o que quer saber de mim, ou se trata apenas de um jogo?¨...

... Batendo na mesa, em tom sério, o delegado repreendeu o agente, alguma tristeza assomou à sua face e todos calaram, fêz-se profundo silêncio...

...Esbaforido e nervoso com o questionamento, Santiago levantou-se e saiu...

...Como se percebesse de repente que, daquele jeito, se tornaria mais um obstáculo e não um auxílio à investigação, Santiago fez com a cabeça um obediente sinal de assentimento e o delegado, que até então não interferira nem com os gestos do corpo, em tom mais moderado, continuou...

...¨Santiago, saiba que nosso amigo jornalista sabe muito, mas, muito mais do que nós!¨...

...¨Como assim?¨...

...Não houve resposta...

...Resmungando, com brusca mudança de humor, fingindo-se desinteressado, Santiago deu de ombros e sem tomar conhecimento, com a sabedoria que parece só se permitir aos chefes, o delegado prosseguiu...

...¨O Departamento tem dúvidas que são bem anteriores à denúncia sobre adoções ilegais que alguém, daqui de Natal, encaminhou à Brasília. Você sabia que os americanos chegaram aqui a bordo de um navio hospital? Isso já faz quase cinco anos e o navio nem existe mais. Naquela época, um agente da Superintendência de Maceió recebeu informações de que a sofisticada clínica do navio possuía laboratórios para testes de incompatibilidade e estava equipada para executar extração e transplante de órgãos. Entendeu?¨...

...Incrédulo, ele preferiu não interromper e deixar o delegado prosseguir...

...¨Infelizmente, a denúncia nos chegou por intermédio de um brasileiro que esteve preso no congresso de Ibiuna, da UNE, em 1968, mas, como era taxado de comunista, isso comprometeu sua credibilidade... infelizmente. Nós sabemos que o contrabando de órgãos é coisa recente mas que já se tornou uma das mais lucrativas atividades ilícitas, em todo mundo e, como um d(eu)s, o dinheiro domina totalmente. Um dia, um ricaço americano, ao ver seu filho à beira da morte, sabendo que o perderá se não conseguir um fígado compatível, o que faz? Reza?¨...

...¨Posso fazer uma observação, delegado?¨...

...¨Sim, faça-a¨...

...¨É que até aqui eu não sabia quem era o comunista a quem se referia o agente Santiago¨, e Rodrigues explodiu sardonicamente numa gargalhada, diferente.



CAPÍTULO CCXX

O delegado fez que não entendeu e continuou...

...¨Por ser bilionário, o pai do menino doente sabe que dinheiro consegue qualquer coisa, compra tudo, honra, sentimento, que é um instrumento acima da lei e, o resto, dá para você imaginar. Aliás, a missão específica do navio não era esta, mas com toda certeza alguns dos seus tripulantes se arranjaram bem por aqui e em outros portos. A gente sabe que as pessoas, no desespero, há quem venda até a mãe, quanto mais os filhos. Estamos verificando o caso de um rapaz de Mãe Luíza, um deficiente mental, ocorrido... quando foi mesmo, Rodrigues?¨...

...¨No começo deste ano, ele desapareceu de casa e quando voltou, dias depois, estava cego, sem as córneas. Eu intuo que o pai as vendeu para um americano que chegou aqui em um dia e viajou no outro e, ao que tudo indica, a cirurgia foi realizada no ambulatório do hospital da universidade, com anestesia geral, o que é considerado absurdo, em transplantes desse gênero. Pelo que apuramos, mais ou menos, é claro, porque não há fontes, foi feita clandestinamente, fora do expediente, em plena madrugada. O rapaz não soube dizer sequer para onde o levaram, mas referiu-se a um hospital e um dos vigias de portaria do Miguel Couto chegou a reconhecer e identificar uma das enfermeiras e até acha que viu o rapaz por lá, mais de uma vez, fazendo exames. Estamos fazendo de tudo para esclarecer o caso, mas ninguém fala. A máfia de branco é fogo!¨...

...¨O Departamento¨, disse o delegado, ¨fêz um levantamento completo em cada cidade onde o navio aportou e nos períodos em que esteve ancorado nelas, quando, coincidentemente, crianças pobres desapareceram. Antes de vir para Natal, por sinal, parou algumas semanas no Recife, onde dois pacientes adultos, depois de sofrerem apendicectomia, na anestesia foram induzidos ao coma, passaram algumas semanas e quando reapareceram traziam nas costas cicatrizes lombares, na altura dos rins. Ou seja, ambos só tinham um rim. Houve denúncias disso, várias, mas deram em nada! O certo é que alguém ganhou dólares no mercado negro internacional de órgãos. Sabe por quê? Os dois só têm um rim, cada um¨...

...Rodrigues interrompeu...

...¨O caso das adoções de crianças de Mãe Luiza também é esquisito, nos deixou com uma pulga atrás da orelha, uma puta dúvida. Precisávamos saber se os equívocos nos processos foram feitos para acelerar as adoções, num total de 16, ou se foram intencionais, e tudo indica que sim¨...

...Parou de falar, meditativo, mas não se conteve...

...¨Sob pretexto de adoção, dezenas de crianças que saíram do país, desapareceram. Nossas embaixadas e nossos consulados desistiram de procurá-las e mesmo com a pressão do Itamarati, sabe o que nos disseram? Que não houve nenhum passaporte emitido para nenhuma criança de Natal, nos últimos anos. O delegado Chico esteve em Chicago. Investigou várias pistas. Chegou a algum lugar?¨...



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Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques