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Cuiabá MT, 24/11/2024
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Falooouuu... Frases e textos para ler, reler, treler e guardar

comTEXTO : Acerto de Contas

OUTRAS PUBLICAÇÕES
31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
19/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CCXXI

Intrometendo-se na conversa e demonstrando mais uma vez desconhecimento total do que se tratava, Santiago perguntou do que falavam...

...¨Por que Rodrigues está por dentro, se ele é da DRE, e eu não?¨...

...O delegado suspirou, todos perceberam a irritação, os policiais consultaram-se com os olhos e o tira que brincava com as crianças, aproximou-se, pegou uma cerveja e soltou um berro...

...¨Puta que pariu! Filhos da puta!¨...

...Bateu na mesa com toda a força, deu as costas e afastou-se, indignado...

...Deu para ouvir que repetia o palavrão baixinho, e pelas mãos no rosto, via-se que enxugava lágrimas...

...Ao perceber que sua pergunta sobre o tráfico de órgãos não impressionara, transparecendo de vez o gênio ruim, o agente Santiago explodiu...

...¨Não disse? Aí tem dedo de comuna¨... ...

Definitivamente, não dava para conversar com aquele perito em perturbar os outros, que não conversava, interrogava...

...O ar se tornara pesado, maçante, e chegara a hora de providenciar a retirada, porém algo o impedia de mover-se. Olhava para o alto...

...Pela primeira vez não sabia como proceder e preferiu calar, não falaria enquanto Santiago estivesse ali...

...¨Ao que fui informado¨, prosseguiu Chico, ¨em alguns casos houve processos que tiveram inicio em determinado dia e, nesse mesmo dia, o casal já levou a criança adotada, embarcou para os EUA. O fato é que não houve nenhum controle dos processos, desrespeitaram os ritos processuais exigidos pela legislação. No caso em questão, se fossem cidadãos brasileiros, seria acionada a justiça comum; infelizmente, os envolvidos são estrangeiros e fomos comunicados tardiamente, precisávamos de um flagrante. Foi o assassinato do gringo veado o que acelerou e, ao mesmo tempo, encerrou nosso trabalho. Os gringos não iriam querer misturar o problema político, de suspeita de contrabando de órgãos de crianças e envenenamento de mulheres pobres, com cocaína¨...

...Rodrigues completou...

...¨Não digo que o tráfico de cocaína já esteja aqui. Por enquanto, não está. É pouco o pó que rola por aqui. Brasília também acha. De qualquer modo, o pó está aí, rola mesmo entre os gringos, tenho certeza, e muita gente da sociedade tem conhecimento. É este o meu lance, entendeu? O legista não se deu nem ao trabalho de detalhar a cena do crime, nem sequer especificou a causa mortis. Não examinaram como deviam talvez porque em Natal nunca houve overdoe. Eu desconfiei o tempo todo da pressa dos gringos e estive na campana de um inglês, petroleiro, que devia ser o fornecedor. Os informantes dizem que a cocaína está aí, fácil, e que estudantes, professores, muita gente cafungou nas festas do gringo. Sei que não vai adiantar nada, porque não podemos fazer nada. Meus parceiros voltam hoje para Brasília e qualquer informação será útil para o esclarecimento de tudo. Estragaram tudo na Civil, praticamente o caso encerrou e para você ter uma idéia, quando entramos na casa, tudo estava lavado, arrumado, limpo. Trabalho de profissional, sem dúvida, e a gente ficou na merda¨...

...Ouvira-os com excitação crescente, ar inquieto, o pensamento voltado para Isabel, lembrando que ela o aconselhara...

...¨Nas horas de perigo, concentre-se e reze¨...

...Mentalmente lhe veio a oração de São Francisco e no entanto, ele nada sabia da oração, exceto um trecho que falava do viajor e a estrela guia...

...Ali estava, numa cansativa viagem entre o presente e o passado...

...Debruçara-se numa janela para um passado que, de repente, pela primeira vez, parecia possível recompor...

...Sentiu-se um pouco mais feliz, por chegar a esta conclusão, de que não havia o que temer, que o passado morrera...

...Então respirou fundo e o pensamento voltou imediatamente à Isabel que, como se estivesse sentada ao seu lado, restituíra-lhe a coragem para continuar a ouvir o relato dos policiais. Sentindo-se revigorado, protegido pela lembrança da amada e dos pensamentos negativos, balançou a cabeça e disse...

...¨Sinceramente, sobre este caso não tenho nenhuma opinião. Acho possível a hipótese de Rodrigues. Não creio que se consiga provar nada, sem o hippie. De qualquer forma, é um absurdo, se dissimularam a morte do gringo, muito calculismo. Vinte facadas! Mutilar um cadáver para fugir das repercussões políticas?¨...

...¨O hippie foi chamado às pressas¨, continuou Rodrigues, ¨por volta de uma da manhã, com tudo já acontecido. Temos testemunhas que o viram apressado, num bar de Ponta Negra, que eu mesmo chequei¨...

...¨Bom¨... e Santiago, no jeito falaz e capcioso, sem desperdiçar palavras, indagou...

...¨Onde está o corpo? Voou para os Estados Unidos¨...

...Dando uma risada desdenhosa, exibindo um risinho sarcástico, desabafou...

...¨Nunca saberemos, tecnicamente, o que matou o gringo. Vamos nos dar por satisfeitos com o laudo da perícia, dos legistas, de morte provocada por instrumento cortante, perfurações no coração, pulmões e todas as vísceras. Agora, para você, meu caro repórter, só um conselho, afaste-se desse rolo. Esta merda tem que secar sem feder. Não aconteceu nada com os gringos, entendeu? Eles vão para casa porque querem. Está tudo tranqüilo, entendeu?¨



CAPÍTULO CCXXII

Sentia-se desconfortável mas procurava não demonstrar nervosismo, só aguardava o momento certo para cair fora, a indignação não diminuía e daquele encontro que mais poderia sobrar, a não ser ressentimentos?...

...Acendendo outro cigarro na ponta do que acabara de fumar, o agente provocou nova reação de desagrado...

...¨Doutor Chico, cuidado, tem dedo de comuna aí¨...

...O delegado não prestou tenção porque vira alguma coisa no calçadão e deixou o grupo por alguns instantes, dirigindo-se ao retornar, ao policial que brincava com as crianças, o qual, em seguida, fazendo um movimento rápido, apanhou na mesa a capanga onde guardava a arma, abriu-a, examinou-a e apressadamente subiu à escada, em disparada. Demorou-se alguns minutos a voltar e quando o fez, veio balançando a cabeça, negativamente, acocorando-se na areia da praia, onde ficou a observar alguma coisa, na direção da Ladeira do Sol...

...Sem entender nada, o jornalista desabafou...

...¨Essa conversa me irrita! Não sei se há mais o que dizer, da minha parte ou de vocês¨...

...¨Por quê? Que houve?¨...

...¨Nada, Santiago¨, interferiu Rodrigues, e o recado foi entendido...

...Fora de sincronismo com o quarteto de agentes, sem saber o que o prendia àquela mesa, ao perceber-se mais calmo, dirigindo-se ao delegado, disse que a conversa estava terminada...

...¨Acho que acabou a conversa. Não vamos prolongar, já chamamos atenção demais. Todo mundo ouve o que se fala nesta mesa. Tem gente aí que tem como esporte preferido, me perseguir, me difamar. Por isso, me vou. Até logo!¨...

Os tiras o olharam sem entender nada...

...De relance, ele viu o jipe azul de Mark estacionar lá em cima, na calçada e num gesto de impaciência, ainda tentou compartilhar com o amigo Sebastião, que permanecia impassível, no caixa.



CAPÍTULO CCXXIII

Preocupado, sem comentar a chegada do gringo com os policiais, afastou-se da mesa, dirigindo-se à água, pois queria refrescar a mente. Caminhava mecanicamente quando, erguendo-se, o delegado, que percebera, seguiu-o e sussurrou-lhe uma pergunta ao ouvido...

...¨Você tem uma arma? Precisa de uma?¨...

...¨De jeito nenhum! Não tenho nenhuma, não gosto de arma, nem quando me ofereceram uma em São Paulo, aceitei¨...

...O delegado insistiu que era tempo de ter uma...

...¨Para nós, armas não faltam. Proteja-se! Até a vista¨...

...Repelira a idéia decidido...

...Para que andar com uma arma ao lado ou ao lado de uma arma, um simples instrumento que dá mais medo do que segurança?...

...A oferta significava o quê? Que os tiras sabiam quem ele era ou que, de alguma maneira, alguém recomendara que o protegesse?...

...Ultimamente, por onde andava sentia a presença dos agentes que, talvez, já fizessem isso há algum tempo, semanas ou meses...

...No calor insuportável, afastou-se do bar, caminhou pela areia, ainda endereçou um último olhar aos tiras e, respirando fundo, mergulhou, encontrou um pouco de conforto na água morna e entregue a desencontradas suposições, nadou devagar, no ritmo da oscilação das ondas...

Ultrapassando a arrebentação, teve, pela primeira vez, a visão fantástica da esquina da Ponta do Morcego, de dentro do mar e, súbito, teve medo...

...Com um ar estúpido no rosto vermelho, fervendo de raiva, da beira da praia Mark, depois de fazer vários gestos na sua direção, seguia-o com o olhar...

...Depois, entrou no mar...

...Xaxá, o tira que brincava com as crianças, mergulhou atrás dele, disse-lhe qualquer coisa, asperamente, conforme deu para perceber por seus gestos agitados, e o gringo fez uma linha reta, de volta, aproximando-se rapidamente da praia...

...Não voltou a ver nem o americano nem Xaxá, que sumiram...

...Ao sair da água, notou que reinava no Caravelas, absoluto, um estranho silêncio. Ninguém se atrevia a abrir a boca. É que, em sua insensata cegueira, na tentativa de contaminar a comunidade da praia, de vez em quando a essencialmente alcoólatra esquerda potiguar insinuava calúnias e infâmias sobre ele que, se sentindo ideológica e moralmente superior, e também por achar que nada devia a ninguém, nunca reagia, apesar de odiar não ter superado o mal-estar que a permanente vigilância lhe causava. Se não esquentava, era porque perdera o medo dos insultos. Irritando com a insistência, encarou desafiadoramente a meia dúzia de curiosos que se acotovelavam e empurravam-se na amurada do bar...

...Virando-se para trás, com animosidade incomum, perguntou quem se habilitava, fez um gesto ameaçador e sorriu, com desprezo. Se nunca admitira levar a culpa pelo que não fizera, não seria por causa de meia dúzia de revolucionários de boteco que, depois de tanta luta, iria ceder porque os anos se passavam e nenhum indício de envolvimento com qualquer episódio o desabonava, mas quem queria saber? Enquanto as pessoas não entendessem o passado, sabia que não encontraria a paz, e enquanto isso, com objetivo de injuriá-lo, espezinhá-lo, a maioria, o mantinha em permanente campanha de descrédito, questão que muitos faziam questão de manter mal resolvida...

...Se imaginando o centro da observação de conspiradores silenciosos, os patrulheiros ideológicos das críticas inócuas e comentários depreciativos, das histórias sem fundamento algum, repetitivas, deprimentes, nada confiáveis, muito menos imparciais, porque esgotadas pelo excessivo uso, por seu excesso de orgulho próprio agiu como se não notasse suas presenças...

...Entretanto, como não devia a ninguém explicações, se alguém se atrevesse a acusá-lo, sem as necessárias provas, naquele momento teria reagido, violentamente...

... Sem olhar para trás, sem se despedir nem de Sebastião, deu meia volta, abriu caminho com o ombro, desvencilhou-se dos curiosos e subiu o lance de degraus, desaparecendo no calçadão em meio à multidão que descera à praia para enfrentar outro dia quente, de mais um verão que se iniciava...

...Observou que o jipe e a camionete modelo Veraneio, preta, dos policiais, haviam saído, um logo depois do outro.



CAPÍTULO CCXXIV

Deixou a praia num táxi e logo depois da curva do Hospital Miguel Couto, no final da balaustrada, em virtude de um ajuntamento de pessoas em torno de alguma coisa na calçada, a rua enchera-se de curiosos, alvoroçados, viu que acontecera algo horrível...

...O trânsito não andava...

...Sob calor imenso, um guarda procurava orientar o tráfego...

...O chofer parou no meio da rua e ele viu um cenário assustador, quase indescritível, cacos de vidros, pedaços de pedras, marcas de sangue, riscos de freada violenta de pneus no asfalto...

...Disseram que uma perua Veraneio preta, sem placas, surgida do nada, invadira em alta velocidade a contra mão, abalroara o jipe e sumira em disparada...

...Com as rodas para cima, o jipe nada mais era do que uma massa de metal, indistinta, colidida de frente no muro de pedras...

...O impacto do choque arremessou o pára-brisas a 50 metros de distância, espatifando-o...

...Irreconhecível, com os pulmões esmagados pelas ferragens, o cérebro esbagaçado, partes espalhadas pelo chão, com as pernas, braços, testa, queixo e dentes esmagados, empapuçado de sangue, o corpo de Mark continuava no asfalto quente...

...Não obstante o auxílio da nurse boss, que trabalhava em frente, no pronto socorro do hospital e assumira o controle do socorro, a morte foi instântanea...

...Descendo do taxi para observar do que se tratava, como um simples curioso, não pôde deixar de notar que a nurse boss, em polvorosa, correndo de um lado para outro, distribuía ordens em inglês...

...Ao percebê-lo, olhou-o demoradamente...

...Um olhar velado de ódio...

...Foi com essa imagem da gringa e da morte do rapaz na cabeça, que chegou ao apartamento, mas não conseguiu almoçar, ficou catando nas cansativas e inúteis mesas redondas de começo de tarde, na televisão, notícias do acidente, só se acalmando ao despertar de um cochilo, com o rosto lindo de Isabel à sua frente, exatamente, o rosto da única pessoa no mundo que poderia acalmar-lhe o espírito...

...Resumiu-lhe a longa conversa que tivera com os canas e em gestos calmos Isabel erguia o garfo à boca, mastigava devagar, sem nenhum comentário. Por ser dentista do projeto, talvez soubesse se alguma informação circulara na faculdade, acerca do gringo morto, mas ela disse que nada ouvira, como se ninguém quisesse tocar no assunto. Quando falou do acidente, Isabel prendeu a respiração e arregalou os olhos...

...¨Que mierda! É a segunda baixa em uma semana! Ahora si, estão numa sinuca! Vão ter que jogar a toalha!¨...

...Disseram no tele-jornal que o hippie não deixara pistas, impressões digitais, nada, somente o Volks do americano, abandonado numa curva mal feita...

...Nos dias seguintes, pelo menos para os jornais, morreu o assunto e não se falou mais do crime, que saiu da primeira página, resvalou na de polícia e desapareceu...

A sensação de que algo estava para acontecer intervira diretamente na rotina do casal...

...Com a naturalidade de quem nada tinha a temer, Isabel o acalmava...

...¨Era para acontecer assim, amor, não se preocupe. Depois vamos pensar nisso, juntos¨...



CAPÍTULO CCXXV

...Desgastava-se inteiramente para entender o acontecimento e, indiferente, Isabel desprezava a ansiedade, confortando-o com atos sutis de sedução, roçando as coxas ao cruzar a porta, dando-lhe palmadas leve nas costas, relaxando-o, diminuindo-lhe a introspeção...

...À noite, costumavam sair de mãos dadas pelas calçadas da Afonso Pena, passeando por todo o Tirol, fazendo ressurgir um velho costume que a urbanização intimidara...

...Em constante sensualidade, viviam a primavera de amor, o namoro idílico, o carinho em público no frescor depois da ceia, instantes de imensa ternura, grande intensidade, a união intensa de um belo casal de braços dados, compartilhando as preocupações...

...Era lindo andar ao lado da mais linda mulher de Natal, na calma aparente...

...Levava-a a lugares novos, divertidas distrações que a cidade de Natal esconde para só mostrar a quem é capaz de lhe encher a alma...

...Subiam a Ladeira do Sol, andavam descalços nas areias de Mãe Luíza, sentados nos degraus do farol viam a lua crescendo, encher-se, minguar e, um dia, Isabel perguntou se poderia conhecer a outra margem do rio, referindo-se ao vilarejo paradisíaco de cinco mil habitantes, a Redinha, na outra margem do Potengi...

...Passeavam na muralha da Salgadeira, na beira do Potengi, viram Nossa Senhora da Apresentação no altar, fincado numa pedra sobre a água, erguido por uma devota, Dona Nanoca. Lá, Isabel despertou a fé na padroeira da cidade e revelou perspicácia, numa indagação que era mais do que um comentário, uma pergunta...

...¨É verdade que os portugueses espalharam pequenas imagens de la puríssima em vários rios para despertar a fé nas populações? Natal tem esta. Há uma igual em Belém, segundo me contou uma patrícia minha que lá estuda, e pelo que li, a imaculada Conceição, padroeira do Brasil, foi achada sem cabeça, em Aparecida¨...

¨Em matéria de santos e santas, Isabel, o Brasil é incrível¨...

...¨Como así?¨...

...¨Você já ouviu falar de Giovanni Melchior Bosco? Um santo italiano do Século XIX, conhecido como Dom Bosco¨...

...¨Si! Como no?! De los curas salesianos!¨...

...¨Pois é, ele mesmo. Um dia, em 1883, ele sonhou com uma viagem pela América Latina, de trem, partindo de Cartagena, na Colômbia. Atravessou os Andes, a planície amazônica e quando chegou exatamente entre os paralelos 15° e 20°, ouviu uma voz... ...”aqui aparecerá uma cidade, a terra prometida, jorrará leite e mel, nascerá uma nova civilização”...

...Quase 100 anos mais tarde, surgiu ali uma cidade, diferente de todas as cidades do mundo. Sabe a que cidade se referia o santo? Brasília. Parece mentira, não? Mas, não é...

...¨Como no?¨...

...¨Porque santo não mente!¨...



CAPÍTULO CCXXVI

Isabel sorriu com uma simplicidade tão sincera, que só aumentou-lhe o fascínio, e ele comentou...

...¨Não é injusto afirmar que você tem razão¨...

...¨Temos, sim, algumas santas descabeçadas, mas, antes de pregar o reino divino é preciso entender o reino dos homens. Sabe como eu escrevo d(eu)s? Assim, d(eu)s, interior, uno, único e universal, condenado à solidão porque, se existe, trata-se de um d(eu)s de eus, não é uno, é de cada um, cada qual tem o seu, que reside dentro de você, não está lá fora; se existe, está no microcosmo e é o que você crê, é fé...

...¨Puta Madre!¨, exclamou Isabel, ¨jamás alguien me habló de Dios con tan gran intimidad! Y eso és porque no tienes fé!¨...

...E ela passou a falar de d(eu)s...

...¨É uma dimensão como o tempo, infinito, sem começo nem fim, é todo o espaço contido no tempo, tudo isso comprimido. Não é como o sol, que desde que nasceu se consome e um dia vai acabar, y nosotros con el. Se olhássemos o sol de Saturno, ele seria apenas um pequeno sinal luminoso num vasto crepúsculo; d(eu)s está no particular e é, ao mesmo tempo, o universo, que nunca começou nem nunca vai terminar. Não adianta o homem querer saber a origem, seja o mito da criação, em que d(eu)s fez o homem a partir do barro, ou com a teoria do big-bang, que afirma ter tudo começado há 15 bilhões de anos, numa faísca de vida, de uma ínfima parte de tempo de desintegração total, quando surgiu a primeira estrela. É dificílimo conciliar ciência e religião, ou seja, a magia institucionalizada, que está além da verdade. Nem com a teoria da evolução da espécie humana se pode explicar o homem e a origem do próprio d(eu)s, porque ele não nasceu, não foi gerado. Ninguém vai achar seu começo, jamais¨...

...¨Claro, o que é inventado não precisa ter fim ou começo¨...

...¨Você não acredita, mesmo!¨...

...¨Marx dizia que a religião é o ópio do povo, que a religião não faz o homem; ao contrário, o homem faz a religião. Das duas uma, Isabel, ou d(eu)s inventou o homem ou vice-versa. A ciência é agnóstica demais para perder tempo com estas coisas¨...

...¨Sim, amor, porque a origem da vida de d(eu)s é o que a ciência busca. Mas d(eu)s, ou este d(eu)s materialista de que você fala, tanto está nas vibrações cósmicas como dentro de cada ser, em todos os seres, e pode se manifestar a qualquer um, porque o universo não é aquilo que fica depois da linha do horizonte, é um espaço curvo e infinito, o vácuo que está no pensamento, nas moléculas e partículas de qualquer coisa, perpetuamente em movimento. Não é estático, é dinâmico e rege-se por leis e princípios perfeitos¨, e disse, meditativa...

...¨Nós viemos de átomos de alguma outra estrela que não sabemos onde fica, mas, existe um espírito universal. Concentro-me em d(eu)s, nesse mesmo, o seu, em busca da identificação entre a minha parte ínfima, frágil, e a grandeza absoluta, porque d(eu)s é matéria e espírito, é mente e é vibração. O resto, são ilusões dos sentidos. A fé é um poder, um secreto poder, e tem que haver uma maneira de conciliar a fé com a consciência de que somos frágeis num universo vasto, que já foi muito menor do que é hoje, expandindo-se ainda. Somos filhos de um asteróide e está, provado desde Einstein, as galáxias se afastam¨...

...¨Nunca me preocupei com d(eu)s, Isabel, ele é quem deve estar preocupado comigo¨...

...¨É importante interpretar que d(eu)s existe que ele e o homem não são duas realidades justapostas, mas uma única realidade. A mesma luz que está no sol, está numa gota de orvalho e sempre que a ciência desvendar um mistério, descobrirá outro. O que é isso? d(eu)s, que é tudo, está acima de todas as obras. Quanto mais o exalto, mas forte eu me sinto. Infelizmente, as pessoas necessitam de símbolos para evocar a fé, se convertem a cultos e religiões em busca de tranqüilidade e prosperidade¨...

...¨O homem inventou d(eu)s para explicar o acaso, Isabel¨...

...¨Eu não acho¨, disse ela, ¨d(eu)s e o todo não se enquadram dentro de nenhuma verdade, nem nessa, de que foi o homem quem o inventou. Sabe, amor? Se conseguires despertar um d(eu)s dentro de alguém, como eu suponho que acontece conosco, a reação poderá se dar em cadeia e envolver o universo por inteiro. Esta mágica não necessita de igrejas, religiões, santos, liturgias. Por exemplo, Cristo não desejava uma ideologia organizada¨...

... Interrompendo, ele disse...

...¨Cristo é uma fábula como qualquer outra, se existiu, era um homem comum, igual a qualquer outro, a diferença é que teve a ousadia de se dizer filho de d(eu)s, ou o próprio d(eu)s, personificado, que desceu à terra para morrer como gente e pagou caro, com a vida. Como acreditar que o Cristo é d(eu)s? E que história é esta de d(eu)s descer (ou subir, tanto faz) à terra para derramar seu próprio sangue? Os cristãos de hoje vivem mais sobre os triunfos da Igreja do que sob a cruz, exatamente porque é muito difícil, se não impossível, ser cristão; além de dar a outra face, ainda tem que amar o inimigo!¨...

...¨É que¨, disse Isabel, como que imersa em sono, ¨estive pensando numa história que ouvi, quando criança. Tu sabes que, quando os colonizadores espanhóis chegaram no Peru, o rei Ataualpa pensou tratar-se de deuses. Consta que, ao ver o símbolo da fé católica, o Cristo na cruz, ele falou que se vocês o amavam, se gostavam dele, por quê o pregaram na cruz?¨...

...¨É isso, amor, esqueceram a essência dos ensinamentos de Cristo e construíram em torno dele uma religião, organizada com uma empresa, que tem gerente, chefes, subchefes, funcionários. Ao invés de comentar Cristo, Maomé, Buda ou Confúcio, prefiro d(eu)s, que nunca teve começo nem terá fim, se basta a si mesmo. d(eu)s é como o universo, um processo eterno, uma evolução perpétua que não teve começo e não terá fim¨...

...Olhando-a diretamente nos olhos, frisou, para chamar a atenção...

...¨Do ponto de vista chamado ciência, o universo é matéria, energia, espaço, tempo e vai expandir-se indefinitivamente, só depende da quantidade de matéria. É o que diz a ciência¨...

...¨As pessoas sofrem porque não acham d(eu)s. Sentem-se injustiçadas e agarram-se a signos, religiões e pedem a mediação da virgem e dos santos para chegar ao bem supremo que é d(eu)s. Os que fabricam deuses, escultores de estátuas e pintores de imagens, não são mais que homens. Nada disso é preciso, dijo mi abuela, que não orava para santos, orava para um d(eu)s invisivelmente presente, como eu me sinto quando faço minha oração noturna e alcanço uma certa plenitude. A espera está em meu sangue. Tenho muito mais equilíbrio emocional do que você, por exemplo. És mestiço, moreno. Está no meu espírito, na natureza da minha condição humana. Não precisamos nos apressar por nada. Tudo acontecerá normalmente¨, e ela disse aquilo com tamanha simplicidade e sinceridade que o comoveu... ...¨d(eu)s exige silêncio, dedicação à vida, aos outros¨.



AMANHÃ OS CAPÍTULOS CCXXVII, CCXXVIII, CCXXIX, CCXXX, CCXXXI E CCXXXII


  

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Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques