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Cuiabá MT, 27/11/2024
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Hoje na História Saiba tudo que aconteceu na data de hoje.

comTEXTO : Acerto de Contas

OUTRAS PUBLICAÇÕES
31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
22/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CCXXXIX

¨Você não tem medo de ser preso?¨...

...¨Ninguém vai me prender. Só depois de perder tudo é que a gente se torna livre para fazer qualquer coisa. Sou diferente de todos, fiz-me ou fizeram-me diferente de todos e hoje eu posso falar tudo, publicar tudo...

...¨Tá, tá, continua. Quero ver aonde você vai parar¨...

...É o dinheiro que manda, tudo é mercadoria. O trabalho deixou de ser considerado um esforço humano para ser vendido e comprado. O ser humano é vendido e comprado, entende? É um objeto qualquer, que cada um compra ou vende, entende? Os ricos jamais produzem, Isabel, não dão a mínima para ninguém, exceto para eles mesmos, que vivem no luxo e conforto porque possuem riquezas, acumuladas através de gerações, em histórias familiares e individuais, na maioria das vezes feitas à base de injustiça, violência, crime, exploração, opressão. É assim que se chega à propriedade privada. Não são os patrões que mudam as feições do mundo, não são eles que lutam pela liquidação do atraso!¨...

...Ao expor os fatos embaralhados no raciocínio, empolgado como em raras ocasiões do passado, via pedir passagem a raiva contida, oculta na essência revolucionária. Iluminado pelo brilho dos olhos de Isabel, interessada em cada palavra que dizia, não economizava em exemplos e citações...

...¨O capitalismo é um regime social injusto, obriga o pobre a vender-se ao rico, mas é do operário, do progresso que sai de suas mãos nas indústrias, minas, fábricas, supermercados, nas ruas, enfim, em qualquer lugar onde haja a palavra salário, que se muda a feição do mundo. Salário nada mais é do que o preço dado a uma mercadoria, que é comprado como uma mercadoria qualquer. Se antigamente o escravo era vendido para sempre à uma pessoa, hoje, massacrado pela máquina, o operário é obrigado a se vender por hora, por dia ou por mês. O trabalho assalariado não cria qualquer tipo de propriedade para o trabalhador. Suas condições de vida dependem totalmente da venda do seu trabalho, não do lucro originado pelo capital!¨...

...¨Devagar, amor. Se entusiasme, mas não grite. Já é tarde¨...

...¨Certo, certo. De fato, este é o único tema que me entusiasma, o tema da minha vida!¨

Alegremente, retomou-o...

...¨Sem salário e os assalariados não haveria a produção industrial em massa, em escala ilimitada, em qualquer quantidade e a preços baixíssimos, e, muito menos, o detestável e desenfreado consumismo. O operário é uma pessoa que ganha pouco, que sai para trabalhar de madrugada em ônibus lotados, que nem sempre chegam no horário, vive com fome e, se adoecer, está perdido, vítima do descaso do governo. Não é possível pensar em riqueza e miséria sem pensar nas multidões famélicas das periferias das cidades. A pregação da luta de classes deve ser uma luta diária, uma luta política contra quem oprime e escraviza, contra o patrão e, em sua forma definitiva, contra o capitalismo imperialista, em defesa das coisas nacionais! Em prol de uma sociedade que viva na fraternidade, com igualdade econômica entre os indivíduos e partilhe os bens, para suprir as necessidades!¨...

...Falar sobre o passado lhe reavivava a pregação revolucionária. Tornara-se a própria oratória marxista e só lhe faltava mesmo o caixote...

...¨O capitalista dissemina a miséria e só percebe a questão social quando ela é dedutível de impostos, os famosos incentivos fiscais que o Estado burguês inventou, para redimir-se. Quando um empresário fala em geração de empregos, sinto nojo, porque essa equação hipócrita, antes de tudo, inclui o lucro, o combustível do sistema capitalista¨...

...Prosseguindo na exposição, disse a Isabel que estava mais do que nunca convencido de que a luta iria longe, além, muito além da democracia, que aquele momento que viviam, início da década de 80, era apenas mais uma etapa de um processo aparentemente interminável que, no entanto, um dia teria fim, mas, mergulhado em verdadeiro transe, não conseguiu parar de falar.



CAPÌTULO CCXL

¨No capitalismo o direito de um termina onde começa a liberdade do outro. Já no socialismo, o direito de cada um termina quando começa a necessidade do outro. É esse o princípio da organização socialista, de dar a cada um conforme a capacidade; a cada um conforme a necessidade. É teoria? É somente uma idéia? Tudo bem, que seja apenas uma idéia, mas a idéia não morre¨...

...¨Nunca me falaram assim do socialismo. Parece poético! E Carlos Marx?¨...

...¨Marx não é poético, Isabel. É concreto¨...

...¨Puede decirme como começastes nessa coisa de comunismo?¨...

...Apesar de vir de uma formação católica, desde que ingressara na Juventude seus ideais batiam de frente aos dogmas com os quais convivia e o marxismo não só passara a ser sua religião como era melhor, porque seu poder de sedução vinha do seu caráter científico e não da fé, e nele a natureza era o ser e o homem se fazia pelo trabalho. Usava-o como melhor arma, no combate à hipocrisia, no entanto, foi um provinciano poeta e filósofo libertário, marxista, o professor Esmeraldo, do Atheneu Norte-rio-grandense, cujos ensinamentos transformariam sua vida, quem, depois de seu Raimundo, abriu-lhe o pensamento, deu-lhe a chave para a ação ao ensinar-lhe que a melhor religião é a consciência social. Foi ele que lhe deu de presente o primeiro livro, um romance de Jean-Jacques Rousseau, ¨Emílio¨, sobre um jovem antes de formar sua personalidade, mostrando o desenvolvimento e as consequências da interferência adulta desde a infância. Muito do que sabia aprendera nas conversas com o professor, graças à sua imensa capacidade de falar, de expor, brilhante principalmente em concatenar e relacionar os fatos por mais sem lógica e díspares que fossem, o professor fazia tudo pelo ensino, não dependia do lugar onde estivesse...

...¨À medida em que as máquinas forem invadindo nossas vidas, diminuirá a importância do ser humano, e é a tecnologia que vai mandar¨...

...¨Mas o homem que constrói a máquina, professor, e é responsável por ela¨...

...Diante de Isabel, mais do que nunca lembrava de um velho professor, que dizia...

...¨Dou-te um conselho, meu jovem, abjure-o, d(eu)s é a necessidade humana de consolo, refúgio absoluto, nada mais do que uma atitude de subordinação pois acima da nossa compreensão não há mais nada. Em nosso ciclo de vida, que é curto, na escala temporal da experiência humana, não há lugar para um d(eu)s ou mais d(eu)ses, só para o homem, o único entre os animais a procurar não simplesmente a sobrevivência mas superar o instinto de sobrevivência; é o único que busca atingir o que jamais atingirão os outros animais, a felicidade. Não há d(eu)s em parte alguma. Lembre-se sempre de Karl Friedrich Marx, estamos interessados nos objetivos mais elevados da humanidade, vivemos para ser felizes e promover a felicidade coletiva de todos é nosso desejo, um dever, um anseio universal que não é fruto de uma atividade instintiva ou espiritual, mas eminentemente mental. Marx dizia que a ciência não é mera compreensão ou contemplação, mas um conhecimento eficaz traduzido numa técnica e é graças à emancipação da razão que o homem está construindo a sua relação com o mundo. Leia Friedrich Nietszche, não faz diferença se a morte é uma certeza ou uma incerteza¨...

...Ah!, quantas saudades das conversas ateístas com o professor niilista, na saída do colégio, de volta para casa, devagar, quando muitas vezes ele parava para explicar melhor o raciocínio... ...¨d(eu)s ou a fé, meu jovem, é algo que a razão não alcança; sua existência, portanto, não é problema meu nem seu porque, afinal, a única coisa que o ser obtém de d(eu)s é a consciência culposa¨.



CAPÍTULO CCXLI

O marxismo estava presente, vivo, como prêmio pela fidelidade, em comunhão com ele, uma confissão de fé nascida da experiência. Notando que Isabel aumentara o interesse no que falava, ele expandiu-se, de vez e prosseguiu quase em transe, atento à excitação que despertara...

...¨Demonstrando sua verdadeira compaixão pela humanidade, ao exigir com veemência que se acabe de vez com o capitalismo, este excesso degradante contra a humanidade, antes de qualquer coisa Marx foi uma bela lição de vida, Isabel. Embora a família tenha se convertido ao luteranismo quando ele era ainda criança, Karl Marx era judeu, e como tal, sabia que há séculos o quanto seu povo sofria perseguições na Alemanha, antes mesmo da primeira Cruzada, antes da horda assassina cristã encaminhar-se ao Oriente, para assaltar e matar os ´inimigos´ de Cristo. Mataram primeiro e saquearam os mais próximos, judeus de toda a Europa e talvez por este estigma de perseguido, não foi difícil para Marx comover-se com a pobreza da classe operária e elaborar uma teoria capaz de levar a sociedade a agir, para mudar seu destino. Marx viu como o capitalismo nasceu nas ruínas da sociedade feudal, que é filho natural do cristianismo, dos cruzados e da Inquisição, o Tribunal do Santo Ofício; não foi preciso ele estudar muito para concluir que a acumulação de capitais vincula-se às explorações coloniais, ao tráfico negreiro, ao extermínio e pilhagem de grandes civilizações do chamado Novo Mundo. Ele não via outra saída, a não ser comprometer-se com os pobres e os povos marginalizados de todo o mundo, e dedicou sua vida pelos necessitados. Marx não era uma pessoa comum, formara-se em filosofia na Alemanha e só foi estudar a sociedade capitalista porque queria transformá-la, mudar a vida e a história da humanidade. Sua idéia era ajudar a humanidade a se livrar do sofrimento e em O Capital, sua obra principal, de 1867, há pouco mais de um século, portanto, mostrou que estão interligadas entre si, a economia, política, religião e justiça. É a História quem acusa o sistema capitalista de desumano. A origem do capitalismo é sanguinária, seu surgimento causou grande e violenta alteração na humanidade. O que havia antes da revolução industrial, do capitalismo? O feudo. O que era o feudo? O clero e a nobreza privilegiados, uma minoria de senhores e uma maioria de servos, como, aliás, existe até hoje. Só que, naquele tempo, vivia-se em servidão, mas, sob a proteção de homens corajosos, hábeis na arte da guerra, que protegiam os seus servos, uma vida, talvez, melhor do que a do operário de hoje. O ancestral europeu do capitalismo saqueou, massacrou e exterminou dezenas de milhares de pessoas na Ásia, no Pacífico, roubou o ouro dos Maias, Aztecas, Incas, Pipiles, saqueou Toltecas, Tupis, Guaranis, levou a prata Quíchua, Aimara, assaltou orientais, enfim, todo mundo. Transformaram a nossa terra, o Novo Mundo, em colônia. Hoje, nos chamam de terceiro mundo, de países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. Nunca deixamos de ser explorados. Marx não era um utópico. Ele mostrou que a trilha de destruição do capitalismo começou no latifúndio, fortaleceu-se com o butim recolhido pelas Cruzadas, cresceu com o lucro obtido no tráfico e na escravidão negra, o saque inglês na India, e assim por diante...

...¨Permiso! Estamos em una classe de história, maestro?¨...

...¨Ah, Isabel, deixa eu falar! Faz tempo que não toco nesses assuntos, com ninguém!¨...

...¨Todo bien, sigue¨...

...¨Os financiadores da revolução industrial, a grande responsável pelo surgimento da grande massa abandonada, multidões que invadem as cidades em busca de trabalho, comida, casa, do direito de existir, foram acontecimentos históricos, como a partilha da África¨...

...Perguntando se estava interessada em que prosseguisse, ela disse que sim, ¨claro, parece uma aula de história, não faz mal a ninguém. Ajuda a lembrar certas coisas¨...

...¨A contradição fundamental do capitalismo é entre o caráter social da produção e o caráter individual dos bens produzidos. Antes do capitalismo a propriedade parecia natural, era uma riqueza hereditária, estática. Com o mercantilismo e a atividade comercial, o dinheiro passou a ser outro tipo de riqueza, a móvel, e aí a confusão começou pra valer. Com o surgimento dos ofícios mecânicos¨...

...¨Você defende a volta ao passado?¨, interrompeu Isabel...

...¨Do jeito que as coisas vão, acho que todo mundo deveria pensar na construção de uma sociedade paradisíaca, estável e tranqüila, alegre como a do nosso índio, como disse Jorge Ben na música em homenagem a eles, na história o que há de mais perfeito, mais lindo, ou como diz Orlando Villas Boas, o melhor exemplo de convívio familiar de que se tem notícia, onde não se bate em criança nem em mulher; não se tem chefe e ninguém manda em ninguém nem tem ambição de acumular riquezas, onde não existe o fascínio pelo poder. É para esta verdadeira comunidade humana, para esta sociedade ideal que devemos voltar. Aliás, não só no Centro-Oeste, mas na Amazônia esta sociedade já existe, um exemplo vivo da convivência do sonho impossível, sem guerras. As tribos do Xingu, que substituem a guerra pela disputa esportiva, já mostraram o caminho. Quando a floresta é abatida, o índio perdeu tudo, seu alimento, seu modo de vida. Onde achar a caça, a pesca? Pelo que vi e li, a invasão da Amazônia, tão vasta e rica, é feita sem nenhuma orientação, não segue critérios científicos, técnicos ou culturais, e o pior, é feita sem que se ouça quem mora lá, os ´minhocas´ da terra. É preciso mudar isso, para preservar as culturas, as mitologias antiquíssimas e as centenas de espécies, que desaparecem diariamente. É preciso proibir que se atropele a harmonia da natureza, que se perturbe a ordem da natureza, porque, quanto mais área se ocupar, menos condições de sobrevivência terá o índio, que a cada dia fica sem nada. Sabe qual seria o certo, na Amazônia? O certo seria não fazer, esquecer a expansão da fronteira agrícola. Que direito tem o sulista de dizer-se dono dos recursos naturais, que são de todos, pertencem ao povo? Ele sabe que as terras amazônicas são inadequadas, que a camada fértil é pouco espessa e que o boi exige que cada vez mais se avance na mata¨...

...Isabel lembrou a sua terra...

...¨En la nuestra Amazonía, la ecuatoriana, ocurre el mismo e nadie, excepto los indios, respecta la naturaleza¨...

...Continuando, ele perguntou...

...¨Quantas pessoas sabem que a natureza é mais do que o capital do planeta, único patrimônio das futuras gerações, que pertence a todos, à humanidade? É evidente o esgotamento dos recursos fósseis no mundo! Exaurem-se os recursos naturais na mesma medida em que são extraídos e nesse processo de destruição, impulsiona-se a raça humana ao suicídio. A responsabilidade pela saúde do planeta é individual e deve começar nas escolas, com as crianças, para que a ecologia possa se transformar em verdadeira arma contra o capitalismo. É preciso desmistificar que o ser humano e os reinos vegetal e animal se adaptam a qualquer tempo e condições, essa balela de que a natureza é flexível. As agressões humanas ameaçam destruir o planeta mas a vingançca virá, e ninguém poderá impedir a força da natureza, quando ela se manifestar¨...

...¨Eu pergunto¨, interrompeu Isabel... ...¨quando o homem deixará de ser predador do próprio homem e quando se adaptará a si mesmo?¨...

...¨A terra está virando um lixo, Isabel. O que fazer com as montanhas de pneus, garrafas, sacos plásticos, com a contaminação de inúmeros outros produtos perigosos, fabricados com materiais que não se degradam facilmente, inventados pela ´livre iniciativa´, só para dar lucro? Há embalagens que levarão mais de 100 anos para se decompor. Quando vamos parar de poluir a natureza com resíduos urbanos ou com o lixo nuclear, que leva até 200 mil anos para deixar de contaminar? E as moléculas sintéticas, que não existiam até que alguém as inventasse? Que fazer com o lixo espacial, com a quantidade de satélite não parando de aumentar? E ainda há quem chame isto de ´vida moderna!´ A produção de lixo dobra muito além do crescimento populacional. Se antes a maionese, o molho de tomate e o bolo eram feitos em casa, agora já vêm prontos, com embalagens que devemos jogar fora, em algum lugar. O planeta não pode ser transformado em depósito de lixo! Assusta viver nesse mundo doente, Isabel. Que fazer com o lixo e os poluentes tóxicos que as indústrias lançam no solo e nos rios, com a sujeira ambiental do cloro, flúor, cromo, além de outros venenos invisíveis? O capitalismo afeta a fauna, a flora, o ser humano. É dever de todos preservar o planeta, parar o desperdício de uma sociedade de consumo que é, ao mesmo tempo, a sociedade do desperdício. É dever de todos consumir apenas o necessário, para que a terra ainda tenha alguma chance de voltar a ser um éden. A agricultura já ocupa quase um terço da superfície do planeta e as terras apropriadas ao cultivo já começam a escassear. Precisa-se de mais e mais terra para aumentar o plantio, e isso tem um preço, que é bem alto, porque não se planta para matar a fome das pessoas, planta-se por negócio. Quem disse que o capitalista planta para matar a fome do mundo? O desejo de lucro supera a função social da terra. O acesso ao alimento é direito do ser humano! Porque nós temos muita terra, o espiritismo diz que seremos o celeiro do mundo¨...



CAPÍTULO CCXLII

¨Como és larga, la Amazônia brasileña! Volamos sobre ella por más de dos horas!¨...

...¨Exatamente, Isabel. São mais de 3 milhões e 700 mil quilômetros quadrados ameaçados pelo progresso e a ganância, talvez porque a Amazônia abrigue menos de 4% da população brasileira. Por isso é que precisamos de uma estratégia nacional, que inclua projetos mínimos de proteção ambiental, porque está na cara que muitos gaúchos e catarinenses estão de olho nela como uma nova fronteira agrícola. Já chegaram ao norte de Goiás e estão ocupando uma área geográfica de transição, nas imediações dos rios Tocantins e Araguaia, e em Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, ali, no encontro do pantanal com a floresta tropical úmida da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. Qual será o resultando dessa invasão, Isabel? Uma preocupante e irreversível desertificação, sem falar na introdução dos agrotóxicos, que vão parar nos rios, afetando, contaminando animais e peixes. Aliás, quero até fazer uma ressalva, o verdadeiro gaúcho, o de bombacha e lenço no pescoço, nunca foi derrubador de mata. Quem devasta, quem pilhou e devastou as matas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo foram imigrantes inescrupulosos, seus descendentes diretos, indiferentes à destruição causada, antes e atualmente, pois só pensam em si mesmos, não conhecem e não se apegam, em sua grande maioria, à pátria que os acolheu. Para você ter uma idéia, Isabel, no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul é fácil encontrar pessoas, milhares delas, que gostariam de separar aquela região, do resto do país. Por quê não voltam, de uma vez, para a terra de origem dos seus antepassados? Faço uma ressalva aos gaúchos verdadeiros, que amam a natureza e, se não fora assim, onde iriam achar erva, para botar na cuia? O gaúcho verdadeiramente brasileiro, seja chimango ou maragato, difere dos gaúchos descendentes de europeus, sobretudo dos chamados ítalo-americanos; não pensa nem nunca pensou em separar o Rio Grande do Brasil, a não ser em 1840, na luta contra a monarquia absolutista, a tentativa de se fundar uma república, o que, na mesma época, também desejamos aqui, no Nordeste, porque, afinal, tudo é legitimo e válido contra a tirania, mas é duro ver os mais de 30 milhões de nordestinos, sem nenhuma chance, nem aqui nem fora daqui, e ver o governo dilapidar os recursos nacionais para beneficiar apenas os sulistas! Só porque são brancos? O nordestino, descendente do negro, dos índios Tupis, Tapuias, dos portugueses e mestiços, fundou a Nação brasileira, com seu próprio sangue, na batalha do Monte Guararapes, e nunca recebeu nada, só caridade oficial! Antes da Revolução Farroupilha, dos gaúchos, o Nordeste tentou criar a Confederação do Equador¨...

...¨Ao ouvir o nome do seu país, Isabel exclamou...

...¨O que? Contame, contame eso!¨...

...¨Bom, na mesma época em que as colônias espanholas proclamavam independência, se tornavam repúblicas, aqui era outorgada a Constituição do Império, claro, pelo filho do Rei, que se fêz Imperador. Na época em que vocês deixavam de ser colônias e saiam da monarquia, nós entrávamos nela, embora aqui também houvesse movimentos de tendência republicanas, e foram vários, aliás. Em 1824, mesmo ano em que Antônio José Sucre derrotou os espanhóis e libertou o Peru, aqui os nordestinos anunciavam a separação e criavam uma república, a Confederação do Equador. Se você algum dia ouvir alguém falar no nome dessa figura heróica, Frei Caneca, saiba que foi esse pernambucano, um frade carmelita, o idealizador de um dos maiores movimentos de liberdade em nossa terra. Seu verdadeiro nome era Joaquim do Amor Divino, e Caneca, um apelido ganho ainda menino, vendendo canecas de lata. Como era de se esperar, o Império venceu, Caneca foi condenado à morte, mas nenhum algoz obedeceu a ordem de enforcamento e tiveram que fuzilar o pobre¨...

...¨Entonces, tenemos una ligación latino-americana!¨...



CAPÍTULO CCXLIII

¨Mais que isso, temos um herói latino-americano. Diversos líderes foram fuzilados na Confederação, dentre eles o Padre Roma, bispo de Olinda, que era maçom, e um filho dele, de 12 anos de idade, foi obrigado a assistir ao fuzilamento. A Maçonaria, então, cuidou do rapaz, enviando-o aos irmãos dos EUA. Aos 17 anos, quando concluiu sua preparação militar, o jovem brasileiro escreveu a Simón Bolívar, outro maçom, oferecendo-se para lutar na campanha da Gran Colômbia. Seu nome era José Inácio de Abreu e Lima. Em sua terra, Isabel, o Equador, ele participou da batalha de Porrete de Tanquí, com tamanha bravura, que foi promovido a general, por Antonio José de Sucre. Nosso herói latino-americano tem seu busto num praça venezuelana, mas aqui, no Brasil, por enquanto, nem se fala dele¨...

...¨Que lindo! Que hubo con el?¨...

...¨Voltou ao Brasil depois da morte de Bolívar, em Santa Marta, na Colômbia. Agora, o que é irônico, a Maçonaria jamais aceitou o materialismo e, logo após a publicação do Manifesto Comunista, Abreu e Lima, que havia lançado um livro, chamado O socialismo, tornou-se positivista e publicou um jornal para combater as idéias marxistas. De qualquer modo, ele é o meu herói nos Andes¨...

...¨Vou procurar saber mais, quando voltar¨, disse ela, animada...

...¨Voltemos ao Brasil, Isabel. É claro que tivemos outros movimentos contra o Imperador, além da Confederação. Dez anos depois, no Sul, os gaúchos fizeram a revolta deles, a Guerra dos Farrapos, na realidade uma guerra feita para diminuir os impostos pagos ao Império e aumentar a renda dos grandes estancieiros. É por esta e outras razões que eu digo, e disse-o uma vez a Samuel, o verdadeiro Brasil é mais aqui, onde estamos, exatamente na sua parte mais miserável, o Nordeste, terra onde nasceram Caneca e Abreu e Lima! Mas, mudando de assunto, para não deixar os gaúchos em paz¨, comentou, ¨imagine só, o prato mais popular em Brasília, em pleno Goiás, cercada de Bahia e Minas Gerais, é o churrasco! Tem cabimento?¨...

...¨Que tienen en contra ellos, los gauchos?¨...

...¨Nada. Mas, é bom acabarmos com a visão idealizada que se tem do imigrante, de desbravador. Quanto aos gaúchos, Getúlio Vargas era um gaúcho que, como ditador, ficou no poder 15 anos, mais quatro como presidente eleito. Depois dele tivemos uma enxurrada de generais gaúchos, descendentes diretos de europeus. A máquina administrativa do Estado foi tomada pelos sulistas, que, como eu já te disse, além de não poder ver uma árvore em pé, acham-se os substitutos ideais da fauna natural. Por onde andei, do Centro-Oeste à Amazônia, encontrei o ´paulista´, que é como o povo do Acre chama o devastador sulista. O Sul é apenas uma parte do Brasil. E, se eles foram capazes de quase exterminar os índios de lá e destruir mais de 90% da mata atlântica deles próprios, é justo que os mantenhamos longe do que temos de mais sagrado e valioso. É preciso descobrir uma maneira de como transformar esta força destrutiva em alguma coisa boa para o país e para a humanidade. Uma maneira de incorporar esses ´brasileiros novos´ ao povo brasileiro, que nunca teve ajuda do Estado como seus avós tiveram, e olha que nem sabiam falar a nossa língua. A ´alma brasileira´ sofreu uma grande metamorfose com a chegada dos europeus nos Pampas. Foi com eles, a partir de 1860, que a ocupação das terras indígenas e da União se acelerou, mas já é hora desses ´novos´ brasileiros conhecerem o Brasil. Nosso militar conhece, mas é o civil que o destroi e é por isso, como Nação, que a nossa defesa deve caber ao Estado, esse Estado que a direita e a esquerda querem demolir, prematura e desnecessariamente¨...

...¨O Estado?¨...

...¨Sim, porque ao Estado cabe a defesa da União, da Amazônia¨...

...¨Você já escreveu sobre isto, amor?¨...

...¨Sim, grande parte disso está nas páginas do ¨Jornal do Começo¨...

...¨Vai, continua¨...

...¨É preciso viver em harmonia com a natureza, não só na Amazônia. É assustador o que é descartado do que é consumido, o que se perde de alimento em feiras, em casa, nas estradas, armazéns. O problema não é só a falta de alimentos. O ser humano precisa e deve manter um relacionamento saudável com a natureza, para não transformá-la em lixo, senão, um dia, antes mesmo de o capitalismo acabar, ela dará o troco. As multinacionais produzem agrotóxicos sem muita preocupação com a saúde pública nem com o meio ambiente, no entanto, todo mundo sabe que o DDT causa câncer, tumores, anomalias genéticas. Assim mesmo, há anos a agricultura se serve desse veneno. Cá prá nós, ainda bem que o alemão mandou suspender sua aplicação no Brasil¨...

...¨Mira, me dijo Samuel que Cuba tiene una tecnologia para hacer papel a partir da polpa da cana de açúcar e segun el em pocos anos la isla produzirá todo o papel que precisar. Não é incrível? Assim, não precisará derrubar matas, que no las tiene. Por que o Brasil, grande produtor de açúcar, não faz o mesmo?¨...

...¨Algumas usinas queimam o bagaço para produzir energia¨...

...¨Mas a tecnologia pode forçá-lo a isto, amor¨...

...¨O capitalismo modificou radicalmente o que se entendia por ciência, conhecimento. O objetivo da tecnologia da ciência e suas aplicações deveria ser aliviar o sofrimento humano, tornar nossa vida melhor, facilitar a vida de toda a humanidade e contribuir para modelar a natureza, em nome da comodidade da vida. A tecnologia devia ser uma ferramenta para facilitar e melhorar a vida, nunca para subjugá-la. Infelizmente, não se sabe mais se ela serve para auxiliar a humanidade ou para destruí-la; aí estão, produtos da ciência, a televisão e a industrialização, com todos os seus efeitos e defeitos, da poluição do ar e dos rios, à poluição da alma. É muito discutível a responsabilidade ética dos cientistas. Em princípio, deveriam fornecer os instrumentos necessários ao progresso, mas eu pergunto quem vence as guerras? Os cientistas, que aplicam à tecnologia militar seus conhecimentos, desenvolvendo submarinos, aviões, navios, armas cada vez mais melhores e mais capazes para matar, e não esqueçamos a bomba atômica, a mãe da ´guerra fria´. Graças à tecnologia, o homem aumentou demasiadamente seu poder de destruição. Paulo Francis estava coberto de razão ao comentar na televisão o pavor da humanidade contra o arsenal nuclear, porque não tem lógica, se os cientistas sabem que numa guerra nuclear não há vencedores, que todos morrem e, no entanto, num instante de vergonha para humanidade, foram capazes de convenceram Roosevelt e Truman a tocar o audacioso Projeto Manhatan. Agora mesmo, nesse momento milhares de cientistas estão pesquisando e desenvolvendo novas armas biológicas, químicas, até piores. Sabe por quê? Porque não se questionam filosoficamente e assim se anulam, como homens. Não é a tecnologia ou a própria ciência que são monstruosas, amor. Somos nos. Sim, mas os capitalistas, ao dizer, por exemplo, que a guerra é o combustível do avanço tecnológico e necessária para descobertas de novos e mais lucrativos negócios, justificam qualquer monstruosidade. Eles dizem que onde e quando há guerra há negócios. O uso da tecnologia é muito complicado¨.



CAPÍTULO CCXLIV

¨Todos sabem que a ciência e a tecnologia entregam nas mãos de líderes políticos poderosas armas químicas, biológicas e nucleares, assim foi com as bombas atômicas e de hidrogênio, e, nesse ponto, ao invés de servir, a tecnologia torna-se ameaça. A ciência tornou possível a desintegração do átomo e, consequentemente, os horrores desumanos de Hiroshima, Nagasaki, das guerras química e bacteriológica. O pior é que continuam construindo bombas, inclusive a União Soviética, que usa sua tecnologia mais para a guerra, para a defesa, do que para a paz; e também a usa como elemento de dominação. Mais com a finalidade de vender do que usar, o imperialismo diariamente patenteia novas descobertas e isso me faz lembrar do avô dos meus filhos, que perguntava o que acontecerá quando certos países, dominados pelo fanatismo religioso, dominarem o plutônio? Claro, ele via em primeiro lugar uma bomba nuclear nas mãos de árabes, contra Israel¨...

...Ela folheava a Bíblia, à procura de algo e quando encontrou, disse...

...¨Preste atenção, amor¨, e começou a ler Isaías...

...¨A terra está de luto e perecendo, pouco a pouco, profanada por seus moradores. Eles violaram as leis, mudaram o estatuto e, por isso, a maldição devorará a terra e os seus moradores. A pressão humana sobre o planeta só aumenta e se não mudarmos o relacionamento com a natureza, receberemos o castigo e desapareceremos ao exterminarmos o meio ambiente. E poucos são os que restarão. É mais ou menos isso que está escrito, amor. Minha bíblia é em espanhol e traduzi direto. Não é incrível? E isso foi escrito há pelo menos 5 mil anos. Está atualíssimo¨...

...¨Deve ter mais coisa, aí, Isabel. Nunca abri uma bíblia. Minha avó lia para mim. Me lembro, em plena seca, ela dizia, ao mostrar os garranchos depois do curral...

...”Sobrarão tão poucas árvores na floresta que até uma criança poderá contá-las. O grosso da floresta será cortado a ferro´. Eu nunca havia entendido, porque no sertão de Angicos não há florestas, somente a seca¨...

...¨Nosotros somos parte y un producto de la naturaleza. Se acabamos com ella¨...

...¨O planeta está cada vez mais enfermo, pela ação do homem. No mundo todo muitas regiões estão morrendo. Não é retórica alarmista, mas o aumento da temperatura do planeta causará degelo nos pólos, nos Alpes, Andes e em muitas outras partes, elevará o nível dos oceanos e muitas cidades litorâneas serão inundadas. Virão a neve mortal, alteração dos regimes de chuvas, secas, fome, e em alguns lugares a temperatura subirá de maneira insuportável. E você sabe qual é o país que mais polui, Isabel, o que mais emite monóxido de carbono na atmosfera e outros gases danosos, como o CFC? Os poderosos Estados Unidos da América, claro, e em seguida vêm os europeus, que também nada fazem, para não prejudicar a economia, não haver desemprego nem diminuir a produção. Pode, um absurdo desses?¨...

...Ele não só falava com o coração como despertava na memória a senda do tempo escondida no curso de sua dura história, abria as portas que levavam-no a um porão secreto, quase sagrado, onde guardava os dados do passado, e disse, como se fora a primeira vez que falasse deles...

...¨O capitalismo é o grande predador, sua ganância e usura são insaciáveis. Quem iniciou o processo de exploração intensiva dos recursos naturais, quem derrubou as florestas da Europa, para transformá-las em energia mecânica, com o vapor, foi a industrialização. É um crime o que os humanos fazem com o clima mundial, da natureza, um sistema muito sensível. Com o efeito estufa o planeta está mais quente e as mudanças climáticas, causadas pelo homem, reduzirão as chuvas. As camadas de gelo derretem ano a ano, haverá enchentes e apesar de saber da necessidade urgente de diminuir as emissões industriais mundiais de gases, para evitar uma deterioração maior, ninguém faz nada, porque o capitalismo só conhece o significado do curto prazo; apesar de invisível, o aumento da temperatura é uma realidade. Haverá nas próximas décadas grandes tragédias, clima fora de controle, a humanidade convivendo com grandes anomalias e você sabe quem está por atrás do aquecimento global? Não sabe?! Pois eu lhe digo que 1/3 do bióxido de carbono jogado na atmosfera é produzido por indústrias norte-americanas. Quando os oceanos subirem, e subirão, serão grandes os transtornos demográficos, sabe-se que alguns países desaparecerão, submersos. Para onde irão suas populações? Haverá água, comida, para tanta gente? Indiferentes à extinção dos recursos naturais, os acionistas baseiam tudo na competição, na concorrência, no seu aspecto anti-humano, na definição de Engels e sempre correm atrás de novas alternativas que os leve a lucrar mais. Não estão nem aí para o destino do planeta, embora a verdade seja que somos todos afetados, inclusive eles, os capitalistas assassinos do presente e do futuro!¨



AMANHÃ OS CAPÍTULOS CCXLV, CCXLVI, CCXLVII, CCXLVIII, CCXLIX E CCL


  

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